Resposta adequada

Álvaro José dos Santos Silva

Tertuliano, desde meus 13 anos de idade, entra e sai da minha vida ao sabor das lembranças. Ele me foi apresentado em São Paulo, em 1963. Depois, vira e volta reaparece. Mesmo muito tempo após eu voltar para o Espírito Santo, minha terra, há muito tempo, sua lembrança me persegue. E eu gosto disso. Imensamente.

Uma sexta-feira – última – de agosto estava eu no evento Sexta Diversus, no Vila Fruit, em Vila Velha, quando a ordem era declamar poesias. Cobravam-me alguma coisa, alguma obra recitada. E eu, que não fui, não sou e nem nunca serei poeta, me perguntava: “E agora (Álvaro), José?”.

Tertuliano chegou-me à memória. Chamei os organizadores do evento e disse que queria falar. Melhor dizendo, recitar. Fui chamado e, com vergonha de neófito, comecei a explicar o que se passara 55 anos antes da data atual, no bairro de Aclimação (divisa com a Vila Mariana), em São Paulo:

“Fui um garoto brigão. Bem mais do que era prudente ser. Um belo dia houve uma desavença com alguns meninos que jogavam futebol contra nós na Rua Paulo Orozimbo, perto de onde eu morava, no número 992. Pertinho do portão lateral do Cemitério da Vila Mariana. No meio da briga, tentei acertar uma pedrada em quem lutava contra mim, errei o alvo, mas acertei a janela da sala de visitas da casa da vizinha que morava em frente à minha. Ela ficou espatifada”.

Passei o resto da tarde imaginando como explicaria o ocorrido a meu pai, então no trabalho. No início da noite, quando via algum programa na antiga TV preto e branco de então, sem encontrar desculpa plausível, meu pai me chamou, determinado: “Para o quarto!”. Fui. Lá ele tinha nas mãos um livro cujo título e autor somente muito tempo depois, mais precisamente no Vila Fruit, fui identificar. Sentei-me à cama e ele abriu o tal volume numa determinada página onde estava o título “Resposta Adequada” sobre uma poesia.

- Isso aqui é um soneto, fedelho paspalhão. Você sai desse quarto depois de decorar tudinho, me avisar e declamar para mim.

Virou as costas, ouvi a chave dando uma volta pelo lado de fora e fiquei olhando o livro. Quando o barulho de mamãe colocando o jantar na mesa chegou até mim, veio o ronco do estômago junto com ele. Peguei o soneto e comecei a ler, reler, guardar na memória. Depois de declamar para mim mesmo umas cinco vezes e sentir segurança, tomei coragem bati na porta e falei bem alto, mas sem gritar:

- Já decorei, pai!

Pouco depois a porta então fez o barulho de chave girando. Abriu e um pai furibundo parou à minha frente. Tomou-me o livro das mãos sem cerimônia alguma e foi logo dizendo:

- Título do soneto?

- Resposta Adequada – respondi.

- Agora declame. Com vontade, tirando cada uma das palavras de dentro de você, do coração. Eu simplesmente comecei, da melhor maneira possível:

“Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta,
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

- Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso?

Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: - Juízo.

Papai ouviu o tempo todo. Não disse nada após o término da declamação. Em silêncio girou sobre os calcanhares e deixou o quarto. Atrás dele a porta ficou aberta. Minha mãe só me disse, em tom reprovativo: “O jantar está esfriando!”.

Depois desse dia procurei – e consegui – brigar menos em minhas brincadeiras, tanto na rua quanto no clube onde éramos sócios, o Ipê Clube, no Ibirapuera.

Em 1967, envolvido em atividades políticas do meu partido proscrito, o PCB ou Partidão, vim para Vitória “exilado”. Em 1968 retornei. Mas então era o ano do AI-5, quando quase fui preso em uma passeata, junto ao pessoal da UNE. Meu pai decidiu que me defenderia de “morrer em combate”. Fui mais uma vez mandado para Vitória, aqui cheguei aqui em janeiro de 1969, e dessa vez definitivamente.

Após a leitura do soneto no Vila Fruit, alguém que o havia ouvido fez-me declamá-lo novamente no domingo seguinte, durante um evento literário da Academia de Letras de Vila Velha, da qual fazem parte alguns dos meus confrades da AEL. Nos dois casos a plateia ria ao ouvir a declamação. Também, pudera.

E Tertuliano continua comigo. Trata-se de uma poesia de Artur (Nabantino Gonçalvez) de Azevedo (1855/1908), irmão de Aluízio de Azevedo. Estranho, mas o poema hoje é apresentado com o título “Velha Anedota” no livro que o contém (In:AZEVEDO, Artur. Sonetos e peças líricas. Pref. Júlio de Freitas J. Rio de Janeiro: Garnier, s.d).

Não importa. Ele é inesquecível porque tem o poder de abrir portas trancadas...   

Álvaro José dos Santos Silva é jornalista e escritor, autor de vários romances, ocupa a cadeira 14 da Academia Espírito-santense de Letras.

Torta Capixaba III

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