A primeira torta

Anaximandro Amorim

Da primeira torta, a gente nunca se esquece. Confeiteiro de ocasião que sou, lembro-me muito bem da minha primeira. Mas não é dessa torta que eu gostaria de escrever, e sim de uma feita bem antes de mim, lá nos anos 1960, quando eu sequer sonhava em existir. E pelas mãos de grandes autores do nosso Espírito Santo: a antologia Torta capixaba, publicada pela Editora Âncora, de 1962.

Para se entender o porquê dessa “primeira torta”, necessário fazer uma breve digressão histórica. Corria o início dos anos 1960 e o Brasil vivia seus últimos suspiros democráticos, antes do Golpe Militar. Naquele 1962, mais precisamente, o Presidente da República era João Goulart (o “Jango”, o “comunista”); e o Estado do Espírito Santo era sacudido por uma sucessão de três mandatários, quais sejam: Raul Giuberti, vice de Carlos Lindemberg (até julho de 1962); Hélsio Pinheiro Cordeiro, interino (de junho a agosto); e Asdrúbal Martins Soares (até janeiro de 1963), este, eleito indiretamente pela Assembleia Legislativa.

Foi uma época agitada, não apenas politicamente, mas, também, social e culturalmente. A capital se “modernizava”: aqui e ali, a arquitetura eclética (e o que sobrava da colonial) cedia espaço para os espigões modernistas, que, até hoje, rasgam a paisagem urbana capixaba; era o efeito visual de um projeto que havia começado uma década antes, no Governo Jones dos Santos Neves (1951 – 1952), e que culminaria, mais tarde, com a criação do embrião da UFES (1954, no governo de Francisco de Ataíde, vice de Jones), peça fundamental para a alavancagem cultural do Espírito Santo.

E não apenas isso: sobretudo na capital Vitória, aparelhos culturais foram se formando ao longo da primeira metade do século XX, tornando possível um boom literário que ensaiaria seus passos nos anos 1960, quais sejam: a criação do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (1916); da Academia Espírito-santense de Letras (1921); do Curso de Direito (1930); da Academia Capixaba dos Novos (1948); e da Academia Feminina Espírito-santense de Letras (1949). A presença de tantas instituições desse porte denota, também, a formação, seja de uma elite intelectual, seja de uma elite consumidora de cultura, o que ensejava a criação, também, de livrarias.

A mais importante, dentro do contexto da época, foi, indubitavelmente, a “Âncora”. Criada em meados dos anos 1950, o local, de propriedade dos padres pavonianos e gerenciada por Nestor Cinelli, tornou-se um polo de divulgação de ideias, chegando, até, a criar um boletim e uma editora cooperativa. Havia, também, um ciclo de palestras que se dava, tradicionalmente, aos sábados, apelidado de "Sabatinas Âncora", proferidas por toda sorte de intelectuais capixabas.

No local, congregavam-se, basicamente, duas alas intelectuais: a dos "velhos" e a dos "jovens". Os primeiros, ligados às instituições tradicionais mencionadas nos parágrafos acima, de quem podemos citar, à guisa de exemplo, autores do calibre de Adelpho Polli Monjardim, Renato Pacheco, Jayme Santos Neves, Rômulo Salles de Sá e Aylton Bermudes; quanto aos segundos, podemos citar Xerxes Gusmão Neto, Claudio Lachini e Carlos Xenier. Muitos destes "novos" responsáveis pelo chamado "Clube do Olho" e por animar uma "Semana de Arte Moderna Capixaba", em 1963.

É curioso notar que a iniciativa de criar uma antologia tenha se dado pelos "velhos". Aqui, especulamos algumas hipóteses: no grupo, faziam parte autores já consolidados, alguns dos quais, inclusive, pertencentes a alguns, senão a todos os aparelhos culturais em funcionamento do estado, assim, escritores experimentados, detentores do "savoir faire" necessário para a implementação de um produto como um livro que, devemos entender, não era uma tarefa tão fácil naqueles anos 1960, principalmente em um estado "provinciano" como o nosso.

É assim que nasce o primeiro volume da antologia Torta capixaba, publicada pela editora Âncora, da livraria homônima, numa prova da pujança da instituição e, evidentemente, do grupo dos "velhos". Todos os autores foram membros da Academia Espírito-santense de Letras: Augusto Lins, Beresford Martins Moreira, Christiano Ferreira Fraga, Eugênio Sette (que faria parte da Academia após a publicação), Eurípedes Queiroz do Valle, Geraldo Costa Alves, Guilherme Santos Neves, José Antônio Rui Côrtes, José Paulino Alves Júnior, Nelson Abel de Almeida e Renato Pacheco. A antologia contava, portanto, com onze escritores.

Interessante notar, não apenas, que o grupo encerrava autores, digamos, mais “tradicionais”, mas, também, um protagonismo masculino maciço, sobretudo no que tange à Academia Espírito-santense de Letras que, criada em 1921, como dissemos anteriormente, só permitiria mulheres, em seus quadros, em 1981, com a entrada da deputada Judith Leão Castello. Assim, é perceptível, portanto, a ausência de outras vozes (como a feminina, por exemplo) e a hegemonia desse cânone caudatário de uma esfera mais “elitista”, o que se coadunava com um espírito da época.

A antologia é feita em volume único, com 260 páginas, dotadas de um prefácio, escrito por Antonio Simões dos Reis (que se autointitula “bibliógrafo ‘exilado’ no Rio de Janeiro”), e onze seções, cada qual equivalente ao nome do autor, que, além de ter seus textos publicados, ganhava uma minibiografia. A capa do livro já nos prepara para o que vai ser descortinado pelo leitor: “ensaios, crônicas, poesias...” é o subtítulo da obra, o que significa: um predomínio óbvio, até por questões de espaço, de textos literários curtos, em uma média de oito textos para cada autor.

O texto que precede o teor do livro dá a tônica de um projeto ambicioso. Segundo dos Reis, "[n]o momento em que se passa por uma nítida crise nacional, nada mais justo que preparar o povo para o amor à sua terra, para a compreensão do seu destino e a grandeza do seu futuro". Esse "amor", entendo, aqui, como um "ufanismo", dentro da construção de uma identidade capixaba, que elegeria o livro e, neste caso, a literatura, como veículo. E ele continua, dizendo que "as coleções programadas dão uma noção do trabalho orientado", ou seja, em tese, Torta capixaba seria mais uma dentre as várias publicações, dentre desse âmbito. Em tempo: Torta capixaba II: poesia e prosa, organizada por Renato Pacheco, sairia bem mais tarde, em 1989.

Segundo consta do volume, os textos são os seguintes:

Augusto Emílio Estelita Lins (1892 – 1982):

  • Prosa brasileira;
  • Canaã, obra-prima;
  • Santa Teresa;
  • A floresta tropical;
  • Visão na mata;
  • Saber sofrer;
  • Mundo mau;
  • A abertura do rumo e a derrubada;
  • A fauna e a flora no Canaã.

Beresford Martins Moreira (1912 – 1984):

  • Esta é terra;
  • Vitória;
  • Rio Doce;
  • Guarapari;
  • Regência augusta;
  • Este é o povo;
  • Frei Palácios;
  • O Pioneiro;
  • Mar vivo;
  • O chamado da terra;
  • Ideias sem compromisso;
  • Oração de um juiz, a Cristo entronizado.

Christiano Ferreira Fraga (1892 – 1984):

  • Conceição;
  • Crônica de enterro;
  • Reflexologia e educação;
  • Apunte etimológico.

Eugênio Lindemberg Sette (1918 – 1990):

  • Crônicas.

Eurípedes Queiroz do Valle (1897 – 1979):

  • Curiosidades Espírito-santenses;
  • Trechos de orações acadêmicas;
  • Crônicas;
  • Carta a Marta Rocha;
  • A psicologia dos auditórios.

Geraldo Costa Alves (1919 – 1973):

  • O milagre do sino;
  • Ar excelso;
  • Milagre de Anchieta;
  • O sino de ouro;
  • A revolta dos escravos.

Guilherme Santos Neves (1906 – 1989):

  • Torta capixaba;
  • Manuel Bandeira e a poesia popular;
  • Olhos de Basilisco;
  • O velho "batismo" do vinho e do leite;
  • Santo Ivo - patrono dos advogados;
  • Conceito e crônica.

Nelson Abel de Almeida (1905 – 1990):

  • A Academia de Seu Antenor;
  • E Vitória mudou...;
  • Ano Velho - Ano Novo;
  • Solucionado o problema;
  • Graciano Neves e a Doutrina do engrossamento;
  • Assim é o Rio Doce;
  • No Centenário de Afonso Claudio;
  • Machado - o Cético aparente.

Paulino Alves Junior (1895 – 1990):

  • La ultima mirada;
  • A tentação de São Francisco de Assis;
  • Bailarina do espaço, a borboleta.

Renato José da Costa Pacheco (1924 – 2004):

  • Alguns Aspectos da História e do Folclore do Espírito Santo:
  • Inventário de escravos;
  • Nupcialidade, em Muniz Freire, no segundo semestre de 1890;
  • Primeira notícia sobre tropas e tropeiros;
  • Ingleses no Espírito Santo;
  • Vocabulário de Mucurici e dos ciganos;
  • Despedida de anjo faz chorar;
  • Cabocleiro ou brinquedo de caboclo.

Ruy Côrtes (1898 – 1995):

  • A lagartixa de dois rabos;
  • Liberato;
  • A máscara iluminada;
  • O cangeré;
  • O ferreiro;
  • A Folia-de-Reis;
  • Anchieta;
  • Elegia do prenúncio;
  • Cacimba de pobre;
  • Mínimos;
  • A gangorra. 

Cotejando os títulos, temos pistas dos temas centrais da obra, sendo o primeiro, obviamente, o das lendas e histórias do Espírito Santo. O gênero mais encontradiço é o da crônica memorialista, o que significa: a preocupação central dos autores era a de buscar uma identidade capixaba, utilizando-se, principalmente, do que chamamos folclore ou cultura popular, em uma visão mais tradicional da historiografia, como em “Folia de Reis”, por exemplo, ou em pequenos ensaios, como “O pioneiro” (sobre o Frei Pedro Palácios). Aliás, a presença marcante de temas relacionados a essa “colonização do solo” (como também se fala, tradicionalmente), em textos como “Frei Pedro Palácios” ou “Curiosidades espírito-santenses”, denota algo que se acostumou chamar desses autores mais tradicionais, de uma forma pejorativa, até, “literatura do Convento da Penha”. Uma leitura de alguns dos textos mostra um certo “academicismo”, um certo “beletrismo” na escrita, que nos reforça o tradicionalismo desses autores.

Há, também, a presença de estudos literários, como "Canaã, obra prima", de Graça Aranha (supomos por cuja história se passar em solo espírito-santense), “Manuel Bandeira e a poesia popular" (supomos pelo interesse do autor do texto pelo tema do folclore), "Machado - o Cético aparente" e "Graciano Neves e a 'Doutrina do Engrossamento'", único texto que se debruça sobre um autor/livro capixabas, escrito por Graciano Neves (1868 - 1922). A obra em comento é uma sátira que gira em torno de uma espécie de “manual do puxa-saquismo”, para as esferas públicas.

Não podemos deixar de citar os poemas, é claro. Alguns, com inspiração na cultura popular, outros mais intimistas, quase todos balizados na tradição, com metrificações e rimas, como é o caso desses excertos:

Anchieta

Sozinho, em meio à selva, Anchieta reza.
Índio, corça e jaguar, dentre folhagens
Vendo-o, fazem-se irmãos. Nem das aragens
Um rumor. Ouve-o a própria Natureza.

Trata-se, este trecho, do primeiro quartel de um soneto. A opção por essa forma poética já denota tradicionalismo por parte do autor. Aliás, o soneto foi bastante utilizado pelos poetas do Espírito Santo até a metade do século passado, havendo, aí, um certo pastiche poético, com o reprocessar de temas neo-parnasianos, neo-simbolistas e, neste caso, podemos afirmar, neo-românticos. Há um claro ufanar-se das coisas capixabas, com a eleição de José de Anchieta como personagem principal que encerraria essa identidade, esse heroísmo, bem à moda romântica, ainda que o texto tenha sido produzido um século depois, para um livro dos anos 1960. É um perfeito decassílabo, com rimas ABBA (intercaladas ou interpoladas), graves, ricas (reza/Natureza) e enjambements (“dentre folhagens/Vendo-o”, “Nem das aragens/Um rumor”).

A revolta dos escravos

Vamos construir uma igreja
para a maior glória de Deus!
Escravos, ajudai na construção
que eu vos prometo ser dada a libertação!
Vamos construir uma igreja
para a maior glória de Deus!

Aqui, neste excerto, temos uma estrutura em sextilha, que muito faz lembrar as glosas da antiga tradição poética lusitana. No entanto, o texto apresenta versos polimétricos, havendo heptassílabo (ou redondilha maior) no primeiro e no penúltimo, que fazem as vezes de um mote. As rimas se encoram, basicamente, nas estrofes do meio, são graves e pobres (“construção/libertação”). O tema faz clara alusão à Insurreição de São José do Queimado (1849), na cidade de Serra, ou seja, mais um tema proveniente da história capixaba, dentro do projeto de resgate e criação de uma identidade genuinamente local.

Bailarina do espaço, a borboleta

Estava a borboleta azul no seu doidejo
de flor em flor... Mais eis que se emaranha
na insidiosa teia
duma aranha,
que, hórrida e feia,
lhe espreitava o adejo!

Eis aqui um exemplo interessante de um poema intimista, com um assunto que foge da temática central do volume. A borboleta, como uma metáfora da liberdade, ou do belo, ou do efêmero, imagem decantada por tantos poetas, em um excerto que já vislumbra um poema moderno, com versos polimétricos, agrupados numa sextilha cujo esquema rítmico se traduz em ABCBCA, todos com rimas graves, havendo até uma preciosa (“doidejo”/ “adejo”), mostrando uma qualidade e um cuidado com o rigor da construção textual. Um bom exemplo de um autor que, apesar de pertencer ao grupo dos “velhos”, publica, em um recolho cuja maioria dos textos se mostra tão tradicional, um poema que mira para o moderno, inovando dentro de um “cânone capixaba”. Algo a ser, certamente, estudado com mais acuidade.

Enfim, há muito o que se retirar dessa Torta capixaba, no que penso ter apenas provado uma pequena fatia de tudo o que ela pode nos oferecer em termos de sabores literários. Em todo caso, como ninguém se esquece da primeira sobremesa que fez, espero, eu, ter contribuído para que esse manjar literário desperte o paladar de mais gente, curiosos, como eu, para revisitar velhas receitas, porém, com novos ingredientes.

Anaximandro Amorim é autor, entre outros, de Breviário do silêncio e A vida depois da luz. Ocupa a cadeira 40 da Academia Espírito-santense de Letras.

Torta Capixaba III

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