Era o ano de 1914 quando a fazenda foi alegrada com a chegada de um herdeiro. Com ele veio a esperança da continuação da burocrática família cafeeira, até então povoada por rebentos femininos.
Chega o ano de 1929 com os fortes ventos de recessão econômica que trazem a “Grande Depressão” e os efeitos decadentes para a produção do café e a sua estagnação no mercado, mas não afetaram os cofres da família. Na monocultura cafeeira acrescentaram a criação de gado leiteiro. As transformações políticas também não comprometeram a família, pois o clã, adepto ao novo governo, fazia parte dos governantes locais.
Assim, o reizinho da fazenda cresceu nesse ambiente familiar, apadrinhado pelas irmãs, pelas empregadas e pelos pais. Foi estudar na cidade vizinha. Não passou do curso ginasial.
Com a morte da mãe e depois do velho pai, passou a ser um único cuidador do café aumentando o poderio.
Tímido, amava o belo sexo, mas das moças casadouras locais não se aproximava, mas com elas sonhava. O tempo passando e o café crescendo, aumentado as sacas e os cofres. Mas dos encantos de Vênus só nos venais encontros ocultos nos prostíbulos, em geral da cidade vizinha, pois o perigo de más línguas saberem atormentava o espírito desse filho de Eva. Contudo os olhos tímidos espreitavam as mocinhas belas e ricas, pois pobre iria diminuir o caudal da família. Pobres só as dos prostíbulos. A timidez não o deixava aproximar-se de nenhuma jovem das ricas famílias cafeeiras locais. De D. Juan, apesar de ser como esse mito procedente da classe dominante, nenhuma característica tinha da ativa, vital e ardente sensualidade energia, instinto, tensão de vida e beleza, características do mito zombeteiro da honra dos demais, personagem de famosas luxuriosas aventuras.
Seu porte e perfil medianos, com escassos cabelos, sua excessiva timidez para manter uma conversa com qualquer mulher e sequer falar-lhe olhando-a nos olhos, mas sempre de cabeça baixa, principalmente se falava com uma mulher com a pureza de “Vesta”, tornou o amor para ele desejo de algo que não tinha, mas que, concretizado, seria a forma unitiva e harmonizadora de sua vida. Era o amor delírio, atração da beleza física, continuidade da família, mas sempre inacessível. Era um amor mentalizado, mas nada tinha de místico, numa construção ideal e pura, mas sensações voluptuosas, paixão violenta de bacanais, orgia dionisíaca de seus sonhos noturnos.
1950, a época dos “Anos dourados”. Houve mudanças nos comportamento das mulheres: mais independência. Seus trajes mais leves e curtos. Saias rodadas e blusas mais justas e leves decotes. Assim surgia na praça, de braços com suas colegas, Lucilene. Com seus 16 anos e sorrisos na face. Aluna interna do colégio impunha sua beleza e alegria da juventude.
Vendo-a no passeio domingueiro, de dentro do carro estacionado no recanto mais escuro da rua, a esperança de ligar-se pelos laços do matrimônio àquela jovem e linda interna, que pelo andar, porte e importante colégio em que estudava interna, deveria ser de grandes posses, dela se enamorou.
Assim, nos dias em que as internas do colégio desciam para caminhar pela cidade ou para irem ao cinema, ali ficava vendo-a passar, e sonhando com os prazeres que teria com a jovem quando com ela se casasse. Muita esperança amorosa deliciosamente sonhava gozar. Foi à grande cidade vizinha e comprou os melhores ternos e chapéus para os dias de domingo celebrar o imaginativo encontro. Criou vida nova, pode-se dizer. Pintou a antiga fazenda, reformou móveis para receber a nubente. Da varanda da fazenda da irmã, onde dormia, nos entardeceres, sentado em sua cadeira de balanço, sonhava com os prazeres que realizaria.
O fim do ano chegou. As formaturas se concretizaram e as alunas foram para a sua casa. O casamento não aconteceu e a rotina sempre a mesma continuou: ir aos currais, vacinar vacas, verificar a pilhagem do café e, nos finais de semana, ir aos prostíbulos da cidade vizinha.
Orar faz bem não importa como.
O sol matutino resplandece numa promessa de paz.
Num azul e ouro dos dezoito séculos
jônicas colunas, com volutas ornamentadas,
sustentam abóboda com
a reunida Família Sagrada.
Ana ensina a Maria
como viver feliz.
Sua voz num sussurro de abelhas reza.
O pai sorri.
Entre mármore e luz
um ancião sacerdote
ergue em trêmulas mãos
a hóstia consagrada para repartir.
Ouve-se um murmúrio.
As palavras antes de serem se esvaem.
Dissolve-se em oração
o coração de três velhas mulheres.
As súplicas de um voyer
piedoso e sonhador se apagam.
Um amante da caninha balbucia.
O operário faz o seu sono de justo.
Orar faz bem não importa como.
Fora os jornais proclamam
“Chacina no morro”.
“Assassinatos de índios”.
“Infração, salário e futebol”.
“Epidemia assola os índios da Amazônia”.
Cansadas mariposas noturnas
se misturam aos bêbados perambulantes.
Distribuem-se cafés fraternalmente.
Os quase “homens” maltrapilhos pilham.
Filas aumentam
E o povo passa sem canto
Mas orar faz bem não importa como.
Nada é Uno no Universo.
Fundem-se o Bem e o Mal
Embalam-nos tristeza e alegria
Retornam Dias claros e Noites escuras
Muito Amor e muito Desamor
Os Diversos se encontram
Neles eu embarco.
O frondoso abacateiro foi abatido.
Os frutos caíram.
Abundância jorrou no solo.
Os galhos morreram.
Não há mais flores nem frutos.
Mas... o tronco agarrou a vida.
Um verde revigorou numa palma.
Sobe, sobe o verde buscando o azul.
A esperança de flores e de frutos
o velho tronco dá.
O verde, de verde adornado de outras vidas
sobrevive.
Antúrios colorem o seu redor
iluminando as brancas camélias.
A sombra frondosa perdeu-se,
mas a luta pela vida continuou.
Se sombreou, vigoroso abacateiro, a casa,
se alimentou homens e animais,
se o velho gambá roeu seus frutos e caroços,
se despertaram gulosos sorrisos
seus grandes frutos,
presenteados com amor,
se abriu sorrisos,
agora luta, luta, abacateiro, para existir
entre mimosas orquídeas
agarradas em seu tronco,
verde sobre verde, esperança de outra vida.
Canta
o vento num sussurro nas rochas,
a água cai em cascatas,
a chuva bate leve na vidraça,
o pássaro se oculta nas escuras ramas.
As lágrimas umedecem a face.
Som,
ritmo,
dueto de flauta
que a alma engrandece
voa.
Durante os acordes
o tempo flui.
A noite se vai com pálido acento.
O dia argenta a orla marítima.
O azul celeste beija o redondel insular.
No horizonte
minúsculos barcos repousam.
No espaço
as primeiras gaivotas zigzagueiam.
No cais
as ondas golpeiam os barcos
que falam de misteriosos mares.
Nos mastros
o vento açoita
e golpeia o matinal caminhante.
Na rua
um ônibus passa e recolhe os que buscam o pão-nosso-de-cada-dia.
Na praia
o esportista flexível vence as vagas
e, em rítmicas braçadas, domina o irritado mar.
Nos montes
no cinza verde que contorna o horizonte sombrio
uma sutil luz vai surgindo.
Nas rochas
resistentes ao trajeto descontínuo
o vento e as águas impiedosas se chocam.
No horizonte
a luz em leque sobre as águas festeja o dia.
Bramas, ó mar,
mas teu ruído proclama-nos à luta.
(Tua eterna música
sempre e depois
é bálsamo
para meus ouvidos
cansados dos claxons).
Enamora-me, ó mar,
sempre e antes
de teu másculo odor.
Tomas e repões, ó mar,
rutilantes grãos
em tua orla argêntea – luz
e te defendes das rochas embrutecidas.
Amo-te, ó mar
- branco e azul.
Mar, ó mar,
-círculo perfeito,
batalhador –
arredondas o mundo,
unindo terra e céu!...
Ester Abreu Vieira de Oliveira ocupa a cadeira 27 da Academia Espírito-santense de Letras, Professora emérita da UFES, presidente da AEL, vice-presidente da AFESL, membro do IHGES e da APEES.