Outros ingredientes

Fernando Achiamé

Camadas a partir do tempo

Tudo sumido tudo
a Fonte Grande e o Reguinho
marés de março e o vento sul
as pedras da Gruta da Onça
e a mata do Maciço Central
com infinitos tons de verde
em radiosa manhã depois
do aguaceiro de verão

Tudo sepultado
os mangues e o Campinho
o Cais de São Francisco
as roças velhas e a chácara Mulundu
o Éden Parque com seu cinema
e o painel de Burle Marx
que por décadas não viu a luz
em quentes tardes de primavera
na agitação da Jerônimo Monteiro

Tudo sepultado tudo
a Rua do Comércio
o pontilhão sobre o braço de mar
depois Avenida República
a nobre Avenida República
e o casario em volta do Moscoso
que conheceu inverno tropical
somente em poucas noites
Tudo debaixo de lembranças

Quase nada sobrou quase nada
vasos sem um mato sequer
tufos de capim no asfalto
palavras nos documentos
do Arquivo Público Estadual
e papos com Fernando Tatagiba
nas madrugadas da Costa Pereira
quando o sopro do outono vibrava
as folhas das palmeiras imperiais

Ainda bem que restaram
as quatro partes do dia
as quatro estações do ano
os quatro pontos cardeais
dos quatro cantos do mundo

Sobraram também andanças
pelo umbigo de Vitória
A juventude deixada
em algum lugar da Cidade Alta
O Museu de Arte Sacra
na capelinha de Santa Luzia
perto da loja maçônica
Na Rua Sete a moqueca fumegante
feita por dona Otília Grijó
para a família comer com
feijão em caroço
No boulevard Pedro Palácios
a amizade com os velhos oitis
e com o doutor Milton Caldeira
servidor público exemplar

Tudo isso é bem pouco
mas o bastante
para os que vierem
viverem mais ainda

Tudo isso é muito
para um dia ser esquecido

 

Fragmentos

O livro que não li aos vinte anos
não o lerei mais, está perdido.
Nem adianta correr atrás do prejuízo.

Deixei de ler várias obras aos vinte anos
(Aos vinte, outras belezas pretendia)
Ao viver dramas e comédias já escritas
afastei-me de textos shakespearianos.

Correndo atrás do futuro, indeciso,
desprezei muito de Vieira, de Cecília.
O destino passou, com ele os livros.
Não adianta lamentar o prejuízo.

Quando, aos quarenta, reli Pessoa
soube que o perdera para sempre:
melhor estava. Ou eu que tropeçara
na busca do impossível? Não sei,
não tive tempo de saber. Nem juízo.

Para fazer outras perguntas,
folheei Pessoa aos sessenta.
Melhor ele soava, mais ainda.
E comigo? O que acontecera?
Teria mudado por sentir isso?
Parei de pensar em prejuízos.

O livro que não li aos vinte anos
e nas estantes da vida ficou retido
a cada instante novo é novo livro.
Em cada um deles me abrigo.
(Que versos ocultam que artifícios?)

Por que me agarrar a páginas impressas?
(Sem elas, o inferno de Dante vira alívio)
As que jamais lerei não me afligem
nem ligo para as que não tenha lido
(Estão no purgatório de um só livro)
Com todas convivo dentro de mim
(Ah, o gosto humano de criar paraísos...)

 

Culinária antiga

Tu que tens a ilusão
de tudo dominar, humilha-te.
Do trigo fazes pão e da uva, vinho.
Conservas o leite por mais tempo,
ao transformá-lo em queijo.
Em um animal juntas carne
e o chamas carneiro.
No boi reúnes mais carne,
por gostares muito dela.
Da mandioca brava tiras a farinha:
do mal arrancas algum bem.
Mas por que cultivas o horror?
Ele sempre integra tua história, o horror.

Subjuga-te, tu que convertes em aço
o ferro e o carvão.
Eles sumirão, se os dissipares.
Nada substitui o original,
até no mundo dos minérios.
E é bom mesmo conservares
sementes em abrigos seguros:
se morrerem os germens das batatas,
todas elas acabarão.
Também entre os vegetais,
nada substitui o original.

Ajoelha-te, tu que pouco a pouco
conheces as leis da natureza
apenas para lhes obedecer.
Nenhuma tu crias ou revogas.
E és desobediente por natureza.
Para teu bel-prazer, queres tudo amestrar.
Tens animais em cativeiro para repasto teu,
mas esqueces: eles não te pertencem.
No reino onde existem,
nada substitui o original.

Ó povo rude, curva-te.
Domaste poucas aves dos céus.
Submeteste alguns seres das águas.
Selecionaste bichos e plantas
para te servirem assim ou assado.
Erras se pensas que és
o topo da cadeia alimentar.
Acima tem outra besta-fera
que de ti se nutre:
tu mesmo, em teus desvarios.
Nada substitui o original.
Nem teus novos pecados.

Levanta o rosto para responder:
Quem te sujeita?
Quem te amansa, infeliz?
(                                     )
E aí? Persistes mudo?
Guardas a boca somente para comer
o feijão com arroz de todo dia?
Isso até evitaria muita desavença...
Até quando produzirás o horror?

Verga-te então sob tua própria pequenez.
Nada domesticaste, nem sequer a ti.
E entre borboletas feitas
com pão de forma e manteiga,
igual à Lagarta Azul interrogando Alice
naquele desenho animado do Disney,
ainda perguntas ao estranho que te habita:
– Quem és tu?

Fernando Antônio de Moraes Achiamé é poeta e historiador, atual ocupante da cadeira 17 da Academia Espírito-santense de Letras.

Torta Capixaba III

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