Em 2021 a Academia Espírito-santense de Letras completará 100 anos de fundação. Na prática local de debates e de troca de experiências entre associados, uma Academia de Letras distingue-se de outras associações literárias por conservar acessível a obra dos que ao longo dos tempos integraram os seus quadros. Vem daí a mal compreendida noção de imortalidade, que outra não pode ser senão da obra produzida pelo acadêmico.
É que numa instituição cultural as realizações de seus membros se somam para constituir o seu patrimônio, tanto mais apreciáveis quanto mais diversificadas forem. Por isso as Academias de Letras, organizações particulares e que não integram a estrutura do Poder Público, procuram selecionar para seu convívio personalidades que convivam em alto nível e cuja obra se mostre representativa do estado contemporâneo da escrita. Ou seja, não se trata de escolher “os melhores”, porque essa noção é subjetiva e está muito longe do propósito da instituição.
Mas regras comportam exceções. Uma delas, recente e para mim plenamente justificável, foi a eleição do poeta Sérgio Blank para a cadeira 9 da Academia Espírito-santense de Letras: Blank era dos melhores, e na eleição para a Academia beirou as raias da unanimidade. Como beira a unanimidade a aprovação à obra poética que deixou. Não que se trate de poesia leve ou fácil. Não é o caso. A poesia de Blank é complexa, como complexa era a sua personalidade. Porque sob camadas de uma doçura que lhe era inata escondia um modo sarcástico de ser.
Blank foi ativista, pela leitura, que cuidava de levar a todos os lados, pela escrita, cuja produção instigava. Ultimamente, por meio de atividade que bolou, pôs escritores locais para refletir sobre o processo criativo de cada um. Tivemos o prazer de receber no Instituto Histórico e Geográfico uma edição do seu exitoso projeto “Por que você escreve”.
Em janeiro de 2019 Blank lançou Blue Sutil, maneira triunfal que inventou de retomar a produção escrita. O hiato criativo – ou, talvez mais apropriado, o hiato entre publicações – fora longo: há vinte e três anos não publicava inéditos. Mas, percebe-se pela concepção, pela linguagem, o observador que pensava macio não deixou de acompanhar o seu tempo. De fato, estava embebido do modo (muito mais que da linguagem), das redes sociais: Blue Sutil reúne textos curtos, mas reflexivos e impregnados de lirismo, publicados anteriormente na sua conta do Facebook. Onde, aliás, forçado ao isolamento pelas frágeis condições de saúde, o poeta era assíduo. Era uma maneira de observar, de apreender e de dialogar com o mundo, cujas sutilezas lograva traduzir com leveza, mas sem prejuízo da profundidade. Como se vê dessa última fase da sua produção.
Blank trabalhou em livraria, em biblioteca, na Universidade. Seu métier era a palavra. A lida, a escrita, a falada. Gostava de falar de livros: nos últimos dias as redes sociais encheram-se de fotos de participações suas em saraus e eventos literários. Era poeta, e o poeta sabe que a palavra reúne em si múltiplos níveis de expressão, alguns insuspeitos, alguns inusitados. Resenhas biobibliográficas nos põem a par da sua obra poética: Estilo de ser assim, tampouco (1984); Pus (1987); Um (1988); A tabela periódica (1993); Vírgula (1996). Tudo reunido posteriormente em Os dias ímpares - toda poesia (2011). Uma vez queixou-se a mim de que tinha virado o “autor de Safira”, seu bem-sucedido livro infantil (1991), em que conta a história da caneta que descobre ter sangue (tinta) azul. Pura irreverência da sua parte. Sua obra era grande.
E agora a obra de Blank chega de fato ao seu porto final. Blue Sutil foi o seu canto de cisne. Não acredito em evolução da obra de um poeta, acredito em lapidação. No longo período de silêncio escrito Blank lapidou sua poética, cristalizada na derradeira publicação. A arguta observação da vida que passa, dos sentimentos aflorados na cogitação das presenças que lhe povoavam os dias, de tudo que o rodeava, enfim, extraindo de tudo um sentido para organizar o seu mundo, me parece ser a essência do que grafou nas últimas páginas que deixou.
E agora esse legado pessoal, do poeta estimado de todos e reconhecido nas ruas, integra-se afetivamente ao patrimônio da Academia. Em termos literários trata-se de um ciclo que se fecha e de uma nostalgia que fica na já longa história da nossa Casa de Letras. Cujos membros são responsáveis pela diuturna concretização do seu propósito, o de semper ascendere.
Obrigado também por isso, Blank.
Getúlio Marcos Pereira Neves, historiador, escritor e poeta com vários livros publicados, é o atual ocupante da cadeira 33 da Academia Espírito-santense de Letras.