Infância

Humberto Del Maestro

Lembro-me, com certa incerteza, de minha adorada infância ou meninice, como alguém que sonda com um discreto binóculo, como uma folha que a correnteza de um rio leva para longe e que sobrevive apenas ‘inclinada’ em nossa intangível memória ou recordação. Lembro-me principalmente que era um menino extremamente pobre e que os presentes de ‘aniversário e de Natal com que sonhava’ jamais chegaram ao campo material do meu sonho. Lembro-me ainda de uma constante esperança, nesse doce período, que jamais floriu, como rosa em um jardim, em meu mundo sem atrativos.

Meu pai buscava o pão de cada dia com muito sacrifício e, às vezes, passava uma semana ou mais longe de casa, oportunidade que tinha de descansar  à noite no solitário leito materno. A cabeceira da cama era alta, de madeira envernizada, lustrosa; batia no meu pescoço, quando estava de pé sobre o colchão macio de penas ou painas, momento em que podia olhar o que havia atrás dela, que se posicionava inclinada, no meio do amplo quarto de dormir, deixando  atrás um bom espaço, onde a poeira, do tempo e dos meus desejos se assentava.


Todas as vezes que ali pernoitava, meus anseios de anjo pediam aos santos e a Papai Noel que colocassem um presente para mim, naquele espaço relegado, embora não fosse época de Natal. E ia dormir consciente de que tais desejos se realizariam, seriam ouvidos por algum ente miraculoso do conto das fadas.  Mas, ao acordar pela manhã e sondar o vão de minha esperança, a decepção feria meus olhos, com a bofetada de uma triste realidade, porque além da poeira, uma enorme ausência ali se instalava, em forma de presente negado.

A infância ainda não se foi de meus olhos, porque muitas aspirações e anseios, daquele tempo de ingênua esperança, ainda esvoaçam sobre mim, cheios de inocência, como uma fotografia envelhecida abraçando velhos anelos de fé. Era uma época em que nada sabia sobre meus pais, o mundo, sobre mim, como viera à vida e mesmo o que seria, no futuro.
               
Lembro-me também de que eram constantes e fantasiosos esses meus sonhos de infante, todos eles retocados em seda e cetim;  forjados de névoas ou delicados e alvos flocos de algodão a se esparzir ao vento, no campo.

A bola bonita de borracha vermelha que nunca saltou frente aos meus olhos, o velocípede amarelo e ágil que jamais chegava aos meus pés vigorosos ou a bicicleta, mesmo usada, que ninguém se condoeu em oferecer-me. Mas algo em mim perdura até hoje e não consigo alijar do pensamento, que ainda sonha.

Aos seis anos, fui batizado, lembro-me perfeitamente do dia, e serviu-me de padrinho um cidadão desconhecido que nunca mais encontrei depois da pequenina caixa de bombons que dele recebi e que foi regozijo a minha irmã mais velha e sagaz e a outras pessoas que faziam ronda em nossa casa.  Mas algo ficou em mim, na memória, daquela data quase apagada.

Nada me lembro da cerimônia de batismo, mas nesse dia, senti-me como um príncipe, em meus sapatos pretos de verniz, calcinha curta de veludo escuro e camisa alva de cambraia de linho, cerzida por minha tia, que pouco entendia desse aprendizado.  E tudo isso me tornou feliz, porque deixou em mim o feitiço de um nobre, naquele dia singular, fragmento de uma meninice doída, mas cheia de esperança, que permanece em mim até hoje, mesmo depois que tanto tempo passou.

Humberto Del Maestro é poeta, contista e cronista, ocupante da cadeira 20 da Academia Espírito-santense de Letras.

Torta Capixaba III

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