Nossos braços não são fracos

João Gualberto

I Primeiras palavras

É sempre bom lembrar – e quero fazer isso no presente texto – que a sociedade capixaba tem uma espécie dívida histórica, não sei se podemos dizer assim, com o seu passado, suas memórias, seus heroísmos. Afinal, a história de nossa saga na construção de uma sociedade regional em um País imenso não tem levado em conta elementos muito importantes, seja na perspectiva dos perdedores, sempre esquecidos, seja na lógica empreendedora que tivemos aqui. Olhamos para trás e nos vemos pequenos, atrasados, fracos e imersos naquilo que se resolveu chamar de marasmo colonial.

Não tentamos elucidar o que realmente se passou em nossas terras em sua construção social. Antes pelo contrário, ficamos a repetir que o território da Capitania Espírito Santo foi uma espécie de barreira verde para impedir a saída por contrabando do ouro das Minas Gerais. A expressão mais comum nos livros de história é que houve um grande marasmo no período colonial. Acham que erámos inexpressivos em termos nacionais. Pouco contribuímos para a edificação da nação brasileira e de seu imaginário social. Há também excessivo louvor às ações dos invasores europeus – portugueses, franceses, holandeses – em seu processo de colonização, esquecendo o universo de dores que causaram.

Esse mito não resiste a nenhuma análise do nosso passado, ele se desfaz com muita facilidade quando começamos a nos debruçar melhor nas fontes históricas Como marasmo, se tivemos a presença da potência jesuítica desde o século XVI até a expulsão dos inacianos em 1759? As igrejas de Nossa Senhora das Neves em Presidente Kenedy, a de Anchieta, a dos Reis Magos em Nova Almeida, a hoje sede do governo estadual, o Palácio Anchieta, para ficar nas mais conhecidas, são marcas dessa potência de que falo. As fazendas de Araçatiba em Viana e a de Muribeca junto à fronteira com o Rio de Janeiro eram as maiores do litoral brasileiro.

Nosso hino fala nas fraquezas de forma equivocada. Não somos fracos, nossos braços não são fracos. Esse é o olhar do início da república em seu afã de progresso, em seu desejo de suplantar o que os positivistas achavam que era o papel negativo da igreja católica e do que eles acreditavam ser as raças inferiores, índios e negros, que nos formaram. Mas, infelizmente, essa narrativa negativa impregna nosso imaginário social. Nos fragiliza, atrapalha no desenvolvimento de um sentimento de pertencimento positivo, como têm gaúchos, pernambucanos, mineiros, por exemplo.

Para tentar construir um argumento contra esses equívocos históricos, eu gostaria de reunir nesse pequeno texto algumas reflexões que tenho feito ultimamente. Aliás, coisa que não é privilégio meu. Historiadores da importância de um Fernando Achiamé têm sido enfáticos ao tratar desse desmerecimento equivocado que temos feito.

Por outro lado, a área de história da Universidade Federal do Espírito Santo tem produzido dissertações de mestrado e teses de doutorado nessa vertente, de valorização do nosso passado. Creio que resgatar nossa força, nossa trajetória histórica, feita de acontecimentos importantes vale a pena. Mas também vale esclarecer certos exageros nas glórias do colonizador, nos seus feitos heroicos. Voltar a história para mostrar nossa potência não significa valorizar o olhar europeu, antes pelo contrário, significa buscar também o heroísmo dos escravizados, negros e indígenas, de suas lutas contra a truculência que foi alimentado pelos senhores do Brasil. Os donos do poder, como muito bem estudou Raimundo Faoro.

II O começo de tudo

Vamos, então, começar do começo, explicando as razões do empreendimento colonial português. Portugal era uma pequena nação europeia, que foi conquistada pelos árabes – a chamada invasão muçulmana – durante quase 800 anos. A expulsão definitiva dos chamados mouros se deu em 1297 quando definiu suas fronteiras. O primeiro País europeu a fazê-lo. Era um reino que estabelecia uma aliança muito clara entre os comerciantes e uma nascente aristocracia nascida as armas.

Um reino tipicamente medieval no início da sua expansão marítima. Na verdade, estabeleceu entre os séculos XV e XVI o primeiro império global da história. O projeto das grandes navegações portuguesas começou a ser esboçado no século XIV, no mesmo momento em que o País começou a construir seu Estado nacional. Aliás, junto com essa construção da nacionalidade veio a contrarreforma, veio o endurecimento das relações dos cristãos com os chamados infiéis. A Santa Inquisição foi a expressão mais acabada desse momento em termos da religião e do desejo de construção de uma ordem ancorado na igreja católica. Veio também a centralização das decisões na corte. No Rei e numa multidão de burocratas. Foi essa burocracia centralizadora e cheia de cargos e privilégios que veio para o Brasil nas caravelas do século XVI. Era um desejo de potência burocratizado e centralizado. Nas cortes e no Brasil, nas estruturas de poder que foram sendo montadas no Brasil. Inclusive no Espírito Santo.

Então precisamos levar tudo isso em conta para entender nossa história como sociedade. Entender as razões profundas da colonização portuguesa na América, no Brasil. É preciso entender que a colonização foi um empreendimento de homens medievais. Registra Jorge Caldeira que:

Domingo, 08 de março de 1500, Lisboa. Terminada a missa campal, o rei Dom Manuel I, sobe ao altar, montado no cais da Torre de Belém, toma a bandeira da Ordem de Cristo e a entrega a Pedro Álvares Cabral. O Capitão vai içá-la na principal nave da frota que partirá dali a pouco para a Índia. Era uma esquadra respeitável, a maior já montada em Portugal, com treze navios e 1.500 homens. Além do tamanho tinha outro detalhe incomum. O Comandante não possuía a menor experiência como navegador. Cabral só estava no comando da esquadra porque era cavaleiro da Ordem de Cristo e, como tal, tinha duas missões: criar uma feitoria na Índia e, no caminho, tomar posse de uma terra já conhecida, que mais tarde receberia o nome de Brasil.

A presença de Cabral à frente do empreendimento era indispensável, porque só a Ordem de Cristo, uma companhia religiosa-militar autônoma em relação ao Estado e herdeira da misteriosa Ordem dos Templários, tinha autorização papal para ocupar – tal como nas cruzadas – os territórios tomados dos infiéis (no caso brasileiro, os índios). Em 26 de abril de 1500, quatro dias depois de avistar a costa brasileira, o cavaleiro Pedro Álvares Cabral cumpriu a primeira parte de sua tarefa. Levantou onde é hoje Porto Seguro a bandeira da Ordem e mandou rezar a primeira missa no novo território. O futuro País estava sendo formalmente incorporado às propriedades da organização. O escrivão Pero Vaz de Caminha, escreveu sobre a solenidade: “Ali estava com o capitão a bandeira a Ordem de Cristo, com a qual saíra de Belém, e que sempre esteve alta.” (1) Para o monarca português, a primazia da Ordem era conveniente. É que atrás das descobertas dos novos cruzados vinham as riquezas que fariam a grandeza e a glória do reino de Portugal.

A proposta visionária (a dos templários, de encontrar um novo caminho para o Oriente longe do controle dos muçulmanos) recebeu o aval do papa Martinho V, em 1498, na bula Sane Charissumus, que deu caráter de cruzada ao empreendimento. As terras tomadas aos infiéis passariam à Ordem de Cristo, que teria sobre elas tanto o poder temporal, de administração civil, quanto o controle espiritual, isto é, o controle religioso e a cobrança de impostos eclesiásticos.

Com isso, em 1418, o infante Dom Henrique (grão-mestre da Ordem de Cristo) consegue o aval do papa ao projeto expansionista. Dali em diante, cada avanço para o sul e para o oeste será seguido da negociação de novos direitos. Em um século, os papas emitiram onze bulas privilegiando a Ordem com monopólios de navegação na África, posse de terras, isenção de impostos eclesiásticos e autonomia para organizar a ação da igreja nos locais descobertos.

Graças a Ordem e a sua política de sigilo, os portugueses sabiam da existência das terras na parte do globo onde hoje está o Brasil sete anos antes da viagem de Cabral. 

Não houvesse a Ordem de Cristo em Portugal, não haveriam os conhecimentos que permitiram a travessia do Oceano Atlântico. Não haveria também a soma de capitais que a Ordem levantou e nem mesmo a estrutura hierarquizada que permitiu a manutenção dos sigilos e a organização militarizada necessárias ao empreendimento em seu início. (2)

O processo acabaria por tornar esses segredos menos importantes, na medida em que foram sendo socializados, vendido, burlados. A própria competição de poder com o Estado português acabaria por minar o poder da Ordem de Cristo. Mas, o processo não se iniciaria sem ela, não teria a força que teve sem ela.

Tão importante quanto a Ordem de Cristo foi a Companhia de Jesus, a Societais Jesu, criada em 27 de setembro de 1548 na França, e que se punham à disposição do papa para qualquer missão que o sumo pontífice ordenasse. Os jesuítas se uniam pelo voto de pobreza, castidade e obediência. A companhia se inspirava nas organizações militares e pretendia ser uma máquina de guerra contra o luteranismo e o calvinismo. Seu principal objetivo era a catequese. Tinha uma estratégia: influenciar antes as crianças e os jovens por intermédio do ensino, e, depois os pais deles. (3)

Mas, desde o início os Inacianos foram seguidos de perto pelos reis de Portugal. Eles foram essenciais na consolidação da ordem jesuítica e na própria construção da imagem mundial dos jesuítas como pregadores e missionários, e se iniciaram quando o fundador Inácio de Loyola era ainda estudante em Paris. O Colégio onde estudava, o Santa Bárbara, era patrocinado pelo rei Dom João III. Foi ele quem contornou as dificuldades iniciais que o papa colocou para o funcionamento da ordem, por meio de seu embaixador em Roma, Pedro Mascarenhas.

Havia um sentido na desconfiança da cúpula da igreja, havia na Companhia de Jesus um afastamento dos pressupostos básicos das ordens religiosas medievais. O primeiro deles era a política da obediência extrema ao superior e todos obedeceriam coletivamente ao papa. Como parte dessa obediência extrema havia um voto de seguir cegamente as determinações dos papas, o que os livraria de seguir a hierarquia eclesiástica tradicional, composta de bispos e cardeais.

Seria uma ordem destinada à propaganda e ao combate doutrinário na esfera pública. Nada de mosteiro, de vida recolhida. O lugar do jesuíta era a rua. Durante as refeições a leitura da bíblia foi substituída pela das chamadas cartas edificantes, peças de propaganda nas quais era narrado o sucesso prático na conversão de almas. Para acolher os novatos que chegaram em grande número, os colégios transformaram-se na alma do empreendimento. Assim, formaram-se com novas elites e treinaram as elites coloniais. Enquanto os padres seculares casavam-se e tinham muitos filhos, os jesuítas eram celibatários e todos voltados para o sucesso do seu empreendimento. A disciplina estava na alma do seu sucesso.

Finalmente, cabe registrar que sem os jesuítas o império português jamais seria o que foi. A Ordem de Cristo e os jesuítas fariam toda construção imaginária necessária à colonização. Disciplina. Por mais que nos soe estranho esteve na base de construção desse império.

Outro ponto a ser lembrado é o surgimento paulatino de um mercado interno, que só pode ser entendido se entendermos também a figura do empreendedor. Somente aonde a pressão exploradora não chegava era possível construir um mercado florescente. Fugir do governo português era imperioso para progredir. Os que assim procediam eram os empreendedores. Era a mistura entre o pequeno produtor livre e mobilidade social. (4)

Ao longo dos trezentos anos durante os quais o Brasil era uma colônia do império português, a nossa economia revelou um dinamismo forte – ao menos bem superior ao da metrópole. Por volta de 1800, seria bem mais correto dizer que a economia do reino era inteiramente dependente daquela de sua colônia. Uma análise sociológica dessa realidade econômica aponta para um centro sempre dinâmico da economia: a população livre.

Apenas 9% dos homens livres eram proprietários de escravos, e apenas em quatro unidades produtivas contava com o trabalho escravo. E elas compartilhavam dos mesmos elementos das que contavam com o braço escravizado. O chamado sítio ou roça era a unidade produtiva dominante. No topo da nossa rede produtiva estava o traficante de escravos.

Essas afirmativas estão ancoradas na visão do historiador Jorge Caldeira. A novidade que a visão dele nos traz é que, anteriormente o modelo que nos explicava, o do latifúndio agrário-exportador, o mercado interno é secundário. Sociologicamente o homem livre tem também papel secundário, de dependentes dos grandes senhores, seus agregados e capangas. Ou seja, essa enorme capacidade de empreendimento não é levada em conta. O grande formulador dessas ideias foi Caio Prado Junior, especialmente em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942 e Evolução Política do Brasil, de 1933.

Conta Caldeira a vida de um certo Capitão Guilherme Pompeu de Almeida, que jamais lidou com o comércio metropolitano e nem com exportações. Não acumulou terras e não tinha a agricultura como principal negócio. Tinha uma fundição em São Paulo, em Santana de Parnaíba, que era a boca do sertão. A partir de 1650 passou a treinar os escravos na produção de artefatos de ferro como machados, facas, anzóis e enxadas. Passou a financiar quem entrava pelo sertão dando mercadorias. Uma espécie de banqueiro do sertão.

O negócio se tornou viável por meio de intermediários, que reunia um conjunto expressivo de nativos. Fazia isso casando-se com várias índias e prometendo artefatos de ferro a seus parentes, em troca de madeira cortada e transportada. O casamento com uma índia tornou-se assim fundamental nos negócios dos empreendedores do Brasil colonial. Essa capilaridade com o universo tupi-guarani é que deu escala aos negócios nessa época. Era uma vasta rede de intermediários formados pelos parentes das mulheres indígenas que dava densidade econômica nessa época. 

Na fase colonial o principal papel do governo é o de arrecadar impostos, e nunca investir dinheiro público em benefício da ampliação da produção. Então o que podemos concluir é que esse crescimento da produção se deu mesmo por intermédio da dinâmica do mercado e das suas necessidades. (5)

São os elementos que precisamos levar em conta para continuar. Sem eles o projeto colonial pode parecer apenas um projeto de construção civilizatório, quando na verdade é muito mais do que isso. É um processo social-histórico da maior densidade e que nos constituiu como nação. No caso do Espírito Santo, nos parece mais grave ainda. Estados como o Rio Grande do Sul ou São Paulo acharam um lugar para seus heroísmos, nós desconhecemos essa saga empreendedora nascida nas cruzadas e potencializada nas conquistas ultramarinas do Século XVI. Nós, esquecendo de tudo isso, achamos que estávamos parados, imobilizados, imersos no marasmo.

III História capixaba empreendedora

A opinião pública letrada capixaba tem do período colonial no Espírito Santo a imagem de uma capitania que não deu certo, enquanto a maioria da população está completamente ausente dessas discussões. Os livros falam do período colonial utilizando a expressão marasmo, que dá a ideia de que nada acontecia. A viagem do naturalista francês Saint-Hilaire narrando a pequena economia da Capitania em 1816 é sempre muito citada nesses casos.

Mas, não há evidências históricas da maioria das afirmativas de nosso fracasso e nem mesmo da ruína pessoal de Vasco Fernandes Coutinho, que é um mito construído na nossa história. Não acredito mesmo que tenhamos fracassado como se costuma divulgar. Até porque sobrevivemos, enquanto que as capitanias vizinhas, como Porto Seguro e Ilhéus, desapareceram. Fomos uma capitania que viveu momentos de fartura e de dificuldades, como revela uma análise feita a partir de documentos que estão sendo agora disponibilizados no mundo digital. Aliás, esse fato merece um registro. São as fontes mais abundantes neste início do século XXI que permite aos pesquisadores atuais rever alguns conceitos com base em melhores e mais detalhadas informações.

Para mostrar as evidências da nossa potência no período colonial, basta lembrar a passagem dos jesuítas na Capitania. Daqueles mesmos jesuítas que vieram para a colônia catequisar e salvar os infiéis. Das imensas fazendas que construíram, uma delas foi a maior fazenda do litoral brasileiro no século XVI, com 2.000 cabeças de gado e mais de 800 pessoas trabalhando, a maioria escravizada. Além das fazendas, os inacianos deixaram em nossa terra conjunto de edificações do maior valor arquitetônico com o Colégio e a Igreja de São Tiago e as igrejas de Nossa Senhora das Neves, dos Reis Magos em Nova Almeida, Guarapari, São João Batista em Carapina e Anchieta. O Colégio e a Igreja de São Tiago foram reformados em estilo eclético no governo de Jerônimo Monteiro (1908-1912), dando lugar ao Palácio Anchieta, atual sede do governo estadual.

A reconstrução dessa narrativa é muito importante para nós como povo, para colocar algumas coisas no lugar, entre elas nossa autoestima. Acabar com essa conversa dos nossos braços são fracos que importa.

A letra do hino do Espírito Santo, que é de Peçanha Povoa, professor do Ateneu Provincial e depois secretário de Educação. Era inicialmente o Hino da Juventude Capixaba. Foi cantado pela primeira vez em 1881 na inauguração da Biblioteca Pública. Foi Jerônimo Monteiro, como presidente do Estado entre 1908 e 1912, que o adotou como nosso hino oficial.

Enfim, é preciso repensar essa história de que não temos identidade, de que fomos usados com uma barreira contra o possível contrabando de ouro das Minas Gerais, ou mesmo da presença de piratas e corsários na nossa costa. Tudo isso é construção imaginária, apoiada em alguns fatos verdadeiros, mas insuficientes para produzir toda essa narrativa da fragilidade, que serve mais como uma trincheira fraca para se esconder. Até porque a força da exploração portuguesa era grande, e as atividades internas também.

José Pontes Schayder, um jovem historiador algo irreverente, mas com teses e análises de qualidade, nos oferece no livro Passado a limpo uma boa reflexão sobre o que ele chama de mito fundador do nosso Estado.  (6). Para ele mito fundador está estruturado a partir de um sentimento de baixa valorização do passado. O próprio Vasco Fernandes Coutinho designou sua capitania de Vilão Farto. Ora, como ele pode ter morrido na miséria sem ter sequer um lençol para cobrir seu corpo?

O exagero teria origem em livro de Frei Vicente Salvador de 1627, que usou como fonte Gabriel Soares de Souza. Para Schayder fizemos um percurso invertido. Já que a Capitania não prosperou vamos visitar o passado em busca das razões desse fracasso. Aí o que ele chama de mito fundador impregna todo o tecido da nossa história, dando esse tom de atraso a tudo o que foi aqui construído. Seria, então, nosso fracasso uma construção que alimentou o nosso imaginário social.

Diz-nos Serafim Derenzi em Biografia de uma ilha:

Era um arrojado cavaleiro medieval, daqueles que se dispunham à luta sem medir os inimigos... Gaspar Corrêa em Lendas da Índia, referindo-se a Vasco Fernandes Coutinho, disse que ele levantava um mouro do cavalo com a ponta da lança, atirava-o ao chão e montava o infiel.

Como aposentadoria, prêmio de seus dezenove anos de lutas na carreira militar, vencia a tensa mensal de 30.000 reais. Não se sabe o quanto montava o amealhado na Índia. A guerra desde os tempos primitivos foi processo natural de enriquecimento dos soldados e oficiais. O saque, depois da rendição de uma praça, era o prêmio indiscutível da vitória. E os portugueses combateram os muçulmanos, inimigos da fé cristã, aos quais nada se poupava.

Não tinha fortuna pessoal, mas era indiscutivelmente, homem de boa fortuna, cinquentão, tostado ao clima tropical do Oriente, vivendo aventuras sedutoras ao gosto dos renascentistas. (7)

Segundo Serafim Derenzi, o acontecimento marcante da segunda metade do século primeiro da colonização do Espírito Santo foi a chegada dos padres jesuítas, membros da Ordem recém-fundada por Inácio de Loiola.

Os cronistas leigos não oferecem argumentos sobre os quais se possa induzir as causas dos desentendimentos frequentes, entre colonos e tribos que habitavam o Espírito Santo. As cartas jesuíticas convenceram a Derenzi que as únicas causas dessas guerras desesperadas foi a resistência do índio em não querer ser escravizado. Os portugueses, não obstante a ação humana dos missionários, tratavam os silvícolas como bestas selvagens. Na obsessão de encontrar ouro, prata e pedras preciosas, os portugueses torturavam indígenas, cortavam-lhes a língua, violentavam suas mulheres, matavam suas crianças.

Essa foi a causa predominante da luta de extermínio, que culminou com o levante geral das tribos do Norte. A Guerra dos Aimorés, na qual houve a Batalha do Cricaré em 1557 e nela morreu Fernão de Sá, filho do governador geral Mem de Sá. Todo um conjunto de lutas e escaramuças vai se instalar em nosso território até o século XIX, e em alguns espaços até a primeira metade do século XX, sobretudo na região do Vale do Rio Doce.

Mas, os jesuítas trouxeram fartura. Como os colégios eram o ponto central de seu projeto, como já registramos, mantê-los era tarefa árdua. Para tanto, eles organizavam fazendas que deveriam abastecer o colégio e também chegar ao mercado. Bruno Conde, (8) em trabalho que trata da escravidão em propriedades jesuíticas, lembra da potência das fazendas em nosso Estado. Além de Muribeca e Araçatiba, as mais importantes, havia nos atuais municípios de Viana e Cariacica, Itapoca, que produzia hortaliças, e Carapina, com diversas culturas.

Muribeca ficava no extremo sul, onde está hoje o município de Presidente Kennedy. Tinha 10 léguas no litoral e oito léguas no sertão, cerca de 70 quilômetros na costa e 56 quilômetros para dentro do sertão. Foi se especializando na pesca e na criação de gado, tendo chegado a ter quase 2.000 cabeças em 1739.

Araçatiba com 2.000 alqueires, ocupava os municípios de Viana, Guarapari, Vila Velha e Cariacica, e tinha quatrocentos escravos negros. Tinha extensas plantações de cana-de-açúcar. O príncipe alemão Maximiliano, em 1815, portanto depois da expulsão dos jesuítas, registrou que ainda havia 300 escravos negros e foi a maior fazenda encontrada pelo príncipe alemão em sua viagem. Bazilio Daemon diz que havia, em 1780, 852 trabalhadores entre escravos pretos, pardos e cabras. Produzia açúcar, melado, aguardente e mel.  Foi a maior fazenda do litoral brasileiro em sua época. Nela foi construído em 1740, o primeiro canal brasileiro, com extensão de 12 quilômetros, ligando o Rio Jucu a Vitória.

O historiador Gabriel Bittencourt no livro A formação econômica do Espírito Santo contabilizou 2.000 reses na Fazenda Muribeca e ainda afirmou que a Fazenda Araçatiba era também dividida em 4 fazendas de gado, fora o engenho. Ao levar em conta a soma do gado em 4.000 cabeças estimando-se 500 reses por fazenda, tem uma renovação de plantel de no mínimo 3.000 bezerros, e com um abate anual de 2.500 reses.

Em 1625 os jesuítas ergueram a Missão de Monte Castello, que contava com 3.000 índios distribuídos em 5 aldeias. Foi um lugar de muita violência contra os indígenas, que também reagiram de forma violenta. Mas de toda forma foi a primeira igreja construída fora do litoral, dentro dos sertões capixabas, a dedicada a Nossa Senhora do Amparo. Castelo teve pioneirismo na interiorização, foi um processo único em termos de fixação de população no Estado. (9)

Mas, a maior prova da força histórica dos jesuítas que chegou até nós são as igrejas que construíram e mais o colégio de São Tiago.  No site do Iphan, encontramos o seguinte:

Igreja Nossa Senhora da Conceição fazia parte do conjunto do aldeamento jesuíta de Guarapari. Assim como a Igreja de Nossa Senhora da Assunção em Anchieta (Aldeia de Reritiba) e a Igreja de Reis Magos em Nova Almeida/Serra, foi erguida no século XVI, fundada e visita pelo padre José de Anchieta. Após a fundação do aldeamento de Reritiba, os jesuítas abandonaram a Aldeia de Guarapari e a Igreja Nossa Senhora da Conceição e a residência entraram em processo de arruinamento.

Em 1751, oito anos antes da expulsão dos jesuítas o conjunto foi é reconstruído. Essa condição, porém, não dura por muito tempo e mais uma vez entra em processo de deterioração. No fim do século XIX, é então novamente reconstruída e internamente modificada com o alongamento da capela-mor. Externamente, a principal alteração corresponde à abertura de duas portas laterais e ao recobrimento da portada com reboco com conchas na fachada frontal. Da residência só resta os vestígios de sua base.

A Igreja Nossa Senhora da Assunção e Residência é remanescente de um dos aldeamentos jesuítas do século XVI, do Espírito Santo, fundados e visitados pelo padre José de Anchieta. Fundada entre 1565 e 1569, Reritiba era diferente dos outros aldeamentos jesuítas por ser, primitivamente, uma aldeia indígena. Os parâmetros de ocupação seguiram o tipo recorrente de um sítio elevado próximo ao mar e a um rio.

A Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, em Araçatiba, foi construída pelos jesuítas no século XVIII, como parte do conjunto de edifícios da antiga Fazenda de Araçatiba, que era constituída pela residência, engenhos, senzalas, oficinas e a igreja dedicada a Nossa Senhora da Ajuda.

Em 1568, o Aldeamento dos Reis Magos, fundado pelos jesuítas por volta de 1580, originou-se por ocasião do deslocamento de Nossa Senhora da Conceição – Aldeia Velha, ao norte (atual Santa Cruz), para o alto da elevação junto à foz do rio Piraqueaçu – Reis Magos. 

Não são tombadas pelo Iphan a Igreja Nossa Senhora das Neves em Presidente Kenedy e o Palácio Anchieta, em função de já serem tombados pelo Conselho Estadual de Cultura.

Outro elemento era a farinha, inserida no circuito de abastecimento interno, produto essencial na alimentação cotidiana nos centros de produção açucareira e minerador. Havia a constituição de um sistema de trocas que supera em muito o nível local de escambo e autoconsumo, cuja produção e comercialização do excedente estavam neste intercâmbio, além dos pequenos produtores livres com ou sem escravos, representando também um setor importante para o mercado interno. São os empreendedores de que falamos no início, a partir de um olhar bem denso de Jorge Caldeira.

Sueni da Vitória Sobrinho, (10) em sua dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação sobre comércio na capitania entre 1600 e 1642, afirma que tínhamos 6 engenhos em pleno funcionamento, contra 63 de Pernambuco e outros 63 na Bahia:

Sobre a produção de açúcar na Capitania do Espírito Santo, a historiografia a qualifica de pouca importância no contexto geral, todavia Ferline nos revela dados que permite compará-los com a produção de Pernambuco e Bahia. Respectivamente com 63 engenhos cada, sendo que o primeiro alcançou a produção de 378.000 arrobas e a Bahia 300.000 arrobas ... 27.000 arrobas no Espírito Santo, dados de 1617. Esse cotejar de produção mitiga a aparência de uma capitania secundária e justifica o interesse da Coroa em estabelecer um controle mais rígido dos negócios do açúcar.

É isso que explica o interesse dos holandeses na capitania, haja vista que essas foram as únicas capitanias a sofrer o assédio dos holandeses, pois eram áreas de satisfatória produção açucareira. 

A mesma autora afirma que a construção naval também era importante no Espírito Santo. Quando Vasco Fernandes Coutinho socorreu Luiz da Grã em seu combate aos franceses no Rio de Janeiro, mandou quatro navios. Como ele chegou aqui com apenas um, é de supor-se que tenha fabricado os outros três. Outros documentos atestam a existência dessa indústria no Espírito Santo durante a fase colonial, com certo nível de produção contínuo.

Bruno dos Santos Conde também tem suas contribuições à tese de que não fomos uma capitania parada no tempo. Em sua dissertação de mestrado, Depois dos Jesuítas: a economia colonial do Espírito Santo (1750-1800), ele lembra que na segunda metade do Século XVIII, em especial depois da expulsão dos jesuítas, o Espírito Santo participou ativamente da economia colonial, jogando por terra a ideia de que a capitania vivia isolada, fechada diante das dinâmicas vividas pelo restante da colônia. Ele acredita que a utilização das fontes do Arquivo Histórico Ultramarino teve a importância de elucidar que a nossa produção não visava unicamente à subsistência da população local.

Ele registra que quando Francisco Gil de Araújo deixou claro ao comprar a Capitania do Espírito Santo em 1674 que desejava encontrar ouro em sua nova possessão, mas o novo donatário não se limitou à busca de esmeraldas, ele de fato promoveu o soerguimento econômico do Espírito Santo, incentivando a agricultura, trazendo novos colonos e pagando parte dos débitos da capitania. Foi estimulada a produção de açúcar por meio do fornecimento de crédito aos donos de engenho e plantadores de cana e a atração de famílias de fora da capitania com a doação de terras.

Aliás, a Capitania do Espírito Santo reforça a hipótese da fragilidade da tese geral de Caio Prado a respeito do tripé da produção brasileira, a saber, latifúndio, produção exclusivamente voltada para a exportação e escravidão. Em outros lugares, como entre nós, floresce a produção de alimentos, isso agora está claro na historiografia mais recente, inclusive do Espírito Santo.

Enaile Flauzina Carvalho, também egressa da área de história da Universidade Federal do Espírito, onde realizou seu mestrado dedicado à pesquisa das chamadas Redes Mercantis e da participação do Espírito Santo no complexo econômico colonial entre 1790 e 1821, portanto os últimos anos de nossa estatura de colônia. Ela fez extensa pesquisa em inventários dos homens ricos daquele período, de onde tirou ricas informações que sustentam seu trabalho.

Para ela:

Diante das trajetórias dos homens dedicados aos negócios, seja na Praça de Vitória, seja em outras capitanias – Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia – nota-se que em princípios do século XIX, já estava estabelecida a elite mercantil capixaba e os mecanismos garantidores do escoamento dos gêneros da terra e os mecanismos e do abastecimento da população com artigos de fora.

O estudo aqui proposto evidenciou a participação da Capitania capixaba no sistema colonial, no sentido de inseri-la como dedicada à produção de abastecimento, mas essencialmente voltada para a comercialização. Deve-se ter em mente não uma produção que garantisse a subsistência da população local, mas sim destinada ao mercado interno da colônia. (11)

Para finalizar, vale registrar o trabalho de Rafael Cerqueira do Nascimento chamado A narrativa histórica da superação do atraso: um desafio historiográfico do Espírito Santo. (12) Nele o autor reconhece que, se o passado colonial foi interpretado como sendo a origem do atraso, ou seja, os séculos XVI, XVII e XVIII, haveria a necessidade de superar esse atraso histórico. Se, por um lado, o Espírito Santo republicano foi interpretado como o tempo do avanço, do progresso quando o passado colonial foi superado, este tido como a origem do atraso.

Então, diferentemente da identidade fluminense que se afirma na representação da importância do Rio de Janeiro para o Brasil: oposta à identidade bandeirante e a ideia de São Paulo como “locomotiva do Brasil”: distante das virtudes que compõem a mitologia da mineiridade, identificamos a especificidade de uma representação de Espírito Santo que institui e reforça o que denominamos de imagem do atraso e sua superação. (13)

Enfim, estou propondo que tenhamos um outro olhar com o nosso Estado. Uma outra narrativa. A do marasmo e do fracasso definitivamente não fica de pé.

 

João Gualberto Moreira Vasconcellos é ocupante da cadeira 29 da Academia Espírito-santense de Letras, coutor em Sociologia, professor emérito da UFES. Foi secretário de Estado da Cultura entre 2015/2018.

REFERÊNCIAS

(1) CALDEIRA, Jorge. Nem Céu nem Inferno: ensaios para uma visão renovada da história do Brasil. São Paulo : Três Estrelas, 2015.

(2) CALDEIRA, Jorge. O banqueiro do sertão. São Paulo : Mameluco, 2006.

(3) CALDEIRA, Jorge (organizador). Viagem pela história do Brasil. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.

(4) CALDEIRA, Jorge. História do Brasil com empreendedores. São Paulo : Mameluco, 2009.

(5) CALDEIRA, Jorge. O lugar do empreendedor, in Nem Céu cem Inferno. São Paulo : Três, 2015.

(6) SCHAYDER, José Pontes. Passado a Limpo: o Estado capixaba e seu mito fundador. Cachoeiro do Itapemirim : Edição do Autor, 2017.

(7) DERENZI, Serafim. Biografia de uma ilha.  Vitoria : Secretaria Municipal de Cultura, 2019.

(8) CONDE, Bruno. Senhores da Fé e escravos – Anais do 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba, 2009.

(9) CASAGRANDE, André & BARBIEIRO, Maria Helena. Castelo: da pré-história ao início do século XX. Castelo : Impresso, 2012.

(10) SOBRINHO, Sueni da Vitória. Capitania do Espirito Santo, uma feitoria portuguesa no Atlântico Sul: a pauta de comércio e a atividade mercantil (1600-1642). Vitória : Universidade Federal do Espírito Santo, dissertação de mestrado, 2013.

(11) CARVALHO, Enaile Flauzina. Redes mercantis: a participação do Espírito Santo no complexo econômico colonial (1790 a 1821). Vitória : Secult-ES, 2010.

(12) NASCIMENTO, Rafael Cerqueira do. A narrativa histórica da superação do atraso: um desafio historiográfico do Espírito Santo.  Vitória : Editora Milfontes, 2018.

(13) NASCIMENTO, Rafael Cerqueira – op. Cit. p. 33.

Torta Capixaba III

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