Certos casos tortos

Marcos Tavares

E eu tinha um convite

Uma cena que vivi em 1980: eu, então estudante na UFES e estagiário na Editoria da FCAA (UFES), dada a minha proximidade com as Letras, do então poderoso prof. Renato Pacheco (escritor, presidente da Fundação Cultural do ES), confesso admirador de meus escritos, generoso que era, recebi formal Convite, bem vistoso, para lançamento de livro ­– sim, de pescarias – no sempre requintado Teatro Carlos Gomes (TCG), em Vitória, ES.

Ele não pudera comparecer. À época, lançamento de livro era um evento e tanto. Algo bem “burguês”, como diria um esquerdista amigo meu. E, após uma longa corrida em volta da Universidade, perdi calorias, banhei-me, e lá fui: com cara, fome e coragem. Sobretudo fome. E mal vestido, roupa rota, camiseta com palavras de ordem (era um frequentador do DCE, um quase ativista político-cultural), negroide, todo aspecto de “fodido e mal pago” (consoante dizia de si e de mim o Fernando Tatagiba, um amigo e jornalista). Tentando “pescar” algo, vi-me, então, em meio a uma turma de engravatados, e de mulheres bem vestidas (colares, brincos, joias tantas) e aromosas.

Sozinho (“qual bicho do mato, sem teogonia” – Carlos Drummond), perdido, esperava que garçom viesse. Não vinha. Premido pela fome, fui atrás dele. Em quase chegando, outro comensal apanhava a iguaria. Fome aumentando. Passavam garçons, sempre com bandeja erguida, tal a quantidade de presentes que já se comprimiam. Fiquei naquele vaivém. Iniciava-se uma espécie de dança algo chapliniana. Ia atrás e... acabava-se o salgado. Ou o docinho. Ou a bebida. Fome aumentando. Já desesperado. Notei que me observavam. Eu destoava daquela gente. Era eu um estranho no ninho, um peixe fora d’água. Senti tontura. Tudo rodou. E garçom não vinha ofertar-me nada. Ora, eu tinha um Convite! “Servido, monsieur Tavares?”, imaginei ter ouvido. Pura paranoia! Eu já alcançava o delírio. Fome, fome, fome.

Uma voz interior, de puro orgulho, ou de medo, imperou em meu ser. Ordem era bater em retirada. Minado o território inimigo. Eu ali um guerrilheiro resistente. Pânico tanto fez-me fugir. Ganhei a rua. Deu-me asas de liberdade a Praça Costa Pereira. Respirei aliviado. Como quem fugido de terra de exílio. Saí com fome. Ou já não a tinha mais. Nem sei. Talvez agora só sede de liberdade. Só sei que ali não era um lugar para um proletário: um lançamento de livros de uma elite socioeconômica. E eu tinha um Convite.
(in: Facebook, 21.05.2016)

 

Homem buscando biblioteca

Ávido a procurar algum detalhe a mais a respeito do projeto “Roda de Leitura”, no qual o professor Francisco Aurélio Ribeiro proferiria palestra, na BPES, busquei essa sigla no Google.

Encontrei BPES: Blepharophimosis Ptosis Epicanthus inversus Syndrome (BPES).

Curioso, fiquei sabendo que essa sigla refere-se a um distúrbio oculoplástico (formação ocular), de origem genética; a síndrome autossômica dominante de blefarofimose-ptose-epicanto invertido. E vi imagens de muitas crianças portadoras desse malévolo BPES, causador de alteração bilateral anatômica das pálpebras, onde há o estreitamento anormal da fenda palpebral, logo, um dificultante da plena acuidade visual.

Lamentei-lhes a condição, confiante em que, um dia, perspicazes estudiosos de Genética resolverão o problema, passando a não mais haver prejuízo à visão do perto e, por conseguinte, à leitura.

De novo busquei BPES. E, dessa vez, encontrei Big Piney Elementary School. Não era o que eu queria, mas li. Agora, pertence a sigla a uma prestigiada Escola infantil situada no distrito de Big Piney, no Estado de Wyoming (USA), onde, presumivelmente, crianças são alfabetizadas desde cedo, assim passando a ser preciosos e precoces leitores.

Por fim, na vasta biblioteca de Alexandria, que é o Google, a minha buscada biblioteca, a BPES, encontrei.

Concluí que buscar biblioteca sempre nos induz a mais leitura e, com razão, a mais conhecimentos, alargando-nos a visão.

Já a Biblioteca Pública do Espírito Santo, intitulada BPES “Levy Cúrcio da Rocha”, essa fica situada na Av. João Batista Parra, sob número165, na Enseada do Suá.

Compareci ao evento.

Francisco Aurélio Ribeiro é escritor e atual presidente da Academia Espírito-santense de Letras.

Foi o livro O pavão desiludido, do bem famoso capixaba José Carlos de Oliveira (o "Carlinhos de Oliveira"), o seu tema.

Desta vez não nos recepcionava o poeta Sérgio Blank, o cicerone de lá: talvez ele, um bibliófilo de mão e olhos cheios de livros, estivesse, qual sempre, mui intrometido, talvez até perdido, na vastidão dessa biblioteca estadual.

(in: Facebook, 20.09.2016)

 

Além do Além

Muito ao contrário do que se pensa e até do que se o diz, sobretudo ao que se escreve, é um recurso bem nobre o trocadilho. As facilidades, por vezes chulas, e em mãos inábeis, é que o banalizam ("trocadalho do carilho", por exemplo).

O notável Guilherme Santos Neves, professor de Língua Portuguesa e membro da Academia Espírito-santense de Letras (cátedra nº 10), em idos tempos, no início dos anos 60, em A Gazeta, publicou uma série de artigos intitulada "Em defesa do trocadilho".

Ali demonstrou o Mestre muitas das nuances que, no decorrer dos tempos, envolvem o uso (e até o abuso) desse floreio estilístico de que Shakespeare, p.ex., fora useiro e vezeiro. É uma figura estilística, proposital, com o emprego de palavras semelhantes (parônimas e homônimas) na forma (homógrafas) ou no som (homófonas), mas de diferente semântica (significação), embora próximas umas das outras. Os mais frequentes casos são cacofonias em que um determinado termo é dito de forma a parecer outro, mormente com intenção de angariar riso ou de servir a uma comédia de erros.

De minha parte, um simpatizante da causa, ainda hei de escrever um ainda que modesto ensaio tanto defensor de seu uso “eufórico” (estético) quanto combatedor de seu uso “disfórico” (desgostoso e desgastado). Nem que por psicografia seja.

Nas Letras, os estilos barroco e neobarroco, além do Concretismo, esses outorgaram ao jogo de palavras uma estrutural utilização.

(in: Facebook, 08.07.2017)

 

Registro nos anais

Quando de minha emposse na Cátedra 15, na egrégia Academia Espírito-Santense de Letras (AEL), em meados de outubro de 2011, choveram felicitações, congratulações, oriundas de toda parte. Houve até quem as endereçasse a Marcos Alencar, um notável jornalista, cronista com viés bem humorístico.

Destinados à Casa de Letras, sita na parte alta de Vitória, ES, sobretudo das Câmaras municipal e estadual chegaram telegramas, cartas, cartões e toda sorte de comunicados, todos com semelhante teor.

Em geral, mais ou menos assim: “O Vereador [ou Deputado] signatário, no uso de suas prerrogativas, requer seja adentrado [ou registrado] nos anais da Câmara Municipal [ou da Assembleia Legislativa] um VOTO DE LOUVOR para Marcos Tavares, pela posse na (...)”.

Desconhecedor do volume de tamanha correspondência que lá já se acumulava, somente numa terceira sessão acadêmica é que pus tino na minha então grã reputação junto aos nobres edis, e sequer período eleitoral era.

Estagiário André trouxe a mim o calhamaço. Em meio aos envelopes todos, o maior deles, de cor branca, de imediato despertou a minha atenção. Nele logo distingui a grande letra manuscrita, professoral, cursiva, do então Senhor Presidente da AEL: era um recado ao seu Vice. E, na possível urgência do ato, continha os seguintes dizeres: “GABRIEL, O BANHEIRO NÃO PODE SER USADO. POR FAVOR, LIGUE PRA MIM. 997XXYY.”

Menos mal. Guardo o tal envelope, para eventual momento jocoso. Uma croniqueta, talvez.

Menos mal. Pior fosse empregado em tarefa nada reciclável. Eu perderia a piada, que é quando a coisa privada torna-se pública; ou vice-versa.

 

De insights verbais

Estabelecendo semelhança com o achado do adjetivo “petulante” para um conto versando acerca de floricultura (“De Florações”), depois de ouvir o meu filhinho Vitório Augusto (então com 3 anos de idade) dizer que procurava uma “pétula” (pétala, ele queria dizer) para levar para a avó dele, hoje olhei a grande mangueira defronte (já vejo “fronde”, donde “frondosa”) à casa onde moro e, tal o tamanho da árvore e a sua beleza, busco-lhe a exatidão de um termo qualificador.

Ora, é uma manhã toda ensolarada, com natural luminosidade a destacar particularidades da mencionada frondosa mangueira. E já há um bom tempo escrevo eu um texto, uma quase crônica, versando esse vegetal e a sua relação com a vizinhança. Talvez aí me viesse à luz pelo menos um frutífero adjetivo para introduzir no tal escrito. Não demorou demais a me vir à mente o termo almejado: “exuberante”.

Também escrevo há quase 20 anos um texto (conto “De caprídeos”) enfocando uma cabra que, leiteira, anseia (sic) plena liberdade de ir-e-vir, e não, num aprisco, perpétua prisão. Assim, com justeza caberia nesse conto o uso daquele adjetivo, que, introduzindo um “r” (erre), ouso transmutar para “exuberrante” (ex = movimento para fora; úber = teta de caprino ou de bovino; berrante = próprio de caprinos).

Já estava me dando por todo satisfeito, vibrante até. “Exuberrante”, no contexto semântico (caprino/aprisco), seria, à mão, uma luva sob medida, “le mot juste” desejável. Desapressado, um pouco mais rumino. Também na escrita é ótimo método o banho-maria. Àquele novo termo bem poderia acrescentar-se um certo efeito onomatopaico muito condizente ao animal em foco. E assim, por vias transgressas, um outro neologismo nasce: “exubééééérrante”.

 

De direito autoral

Era julho de 2013. Já afastado do campus universitário (UFES), porém ainda me julgando conhecedor de seus mui eficientes serviços reprográficos, em cujos anos 80 ali alunos xerocopiavam livros e livros à mancheia, e tendo em vista o bem acessível preço praticado, para lá fui, uma também oportunidade de fruir daquele excelente espaço de reflexão de toda natureza, sobretudo da Natureza. No caminho, reencontro Miriam Cardoso, vizinhos de bairro (Santa Tereza - Quadro) que fomos, com quem muito temos em comum. Ora, Miriam, além de termos sido contemporâneos enquanto estudantes universitários, é literata, gestora, ativista da causa negritude, entre outras, e também, naquela áurea época, esposa de Adilson Villaça, de quem, então apresentado por um incomum comum amigo (Heraldo Fogos), na residência do casal, na rua São João, pude ler primeiros contos ainda em estado datilográfico; os que depois constituiriam o espetacular livro A possível fuga de Ana dos Arcos (contos, FCAA, 1984).

Tomamos um cafezinho na cantina e dirigimo-nos à empresa de xerocópia, logo ao lado. Da inicial alegria passamos à surpresa quando a moça atendente recusou-se a fazer as minhas cópias:
– Senhor, eu só posso copiar com expressa autorização do autor do livro!        

Sobre aquele Setor (ficamos sabendo, e compreendemos) ainda pairava o temor de uma recente operação policial de âmbito federal desfechada em vários similares estabelecimentos. Uma espécie de combate à “pirataria” livresca. E a operação baseava-se na Lei Federal nº 9.610/98 (“Lei de Direitos Autorais”), que proíbe a reprodução de livros para fins comerciais. A benigna Lei, criada em 19 de fevereiro de 1998, atribui direitos sobre a obra intelectual ao seu autor, e estabelece limites para o uso das obras protegidas. Representa ela um avanço importante na regulação dos direitos autorais, em sua definição do que é permitido e proibido a título de reprodução e quais as sanções civis a serem aplicadas aos infratores.

Tanto papel não seria para nada, mas para Inscrição no Edital 10/2013 da Lei Municipal, da Prefeitura da Serra, ES, popularmente denominada Lei “Chico Prego”. Pretendia eu, ao meu Projeto de reedição, anexar um exemplar da obra, visando à obtenção de recursos viabilizadores.

Se projeto aprovado pelo Conselho Municipal de Cultura da Serra e pela Comissão Especial da Lei “Chico Prego”, proponentes recebem certificados e trocam bônus com empresas locais; bônus esse que é obtido com a renúncia fiscal do município, proveniente do ISSQN (Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza), em até no máximo 50% do valor devido pela empresa.

– Mas, o autor do livro é ele próprio!, defendeu-me a sempre legalista Miriam.

E o livro era No escuro, armados (Ed. FCAA-Ed. Ânima, 1987). E o autor era Marcos Tavares.

Fosse eu aquele destacado jornalista e literato paraibano, Marcos Severino Barbosa Tavares (1948-2020), que, reduzido o nome, um meu homônimo assim se assinava, sofreria um pouco de embaraço. Por sorte, nome meu, próprio, de pia, oficial (“uma silepse de número”, segundo o filólogo José Augusto Carvalho), coincide com meu nome artístico para Literatura. De imediato, apresentei documento de identidade com fotografia em 3x4. Mesmo conferindo, a funcionária titubeou: precisava de anuência de seu gerente, que estava em horário de almoço.

Exígua a tiragem da 1ª edição, esgotada a obra nacionalmente distribuída, sequer dispondo eu de um segundo volume, o que até justificava, ainda mais, uma reedição, e não querendo abrir mão de meu único exemplar, mesmo assim, não insisti, não discuti, não esbravejei. E eu tinha ao meu lado e a meu favor a combativa Miriam Cardoso! Despedi-me dessa, e para uma outra copiadora, longe dali, acorri: agora numa reprografia de Faculdade particular, onde, sem questionamentos, cópia integral foi obtida.

Aprovado, pois, o projeto, graças ao bom-senso dos referidos Conselhos serranos, do livro pôde sair, em 2017, uma nova edição: ampliada, reescrita, com prólogo, fortuna crítica, cronologia, biobibliografia, etc.

Por em muito lembrar enredo de seus contos repletos de non sense, beirando o fantástico, o “absurdo”, como diria ele, com até patológica euforia deleitar-se-ia em conhecer essa história o meu saudoso amigo Fernando Tatagiba (1946-1988).

 

Um estilo de ser assim humano

Conheci-o desde ele bem rapazinho, já bibliófilo, quando então vendia livros no campus universitário da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Na condição de estagiário Divisão de Editoria da Fundação Ceciliano Abel de Almeida (FCAA-UFES), nos idos de 1984, fui-lhe primeiro leitor, pois analista de obra dele ali apresentada para avaliação.

Levou, datiloscrito, um calhamaço. Dada a limitação orçamentária da entidade, apadrinhou-o o decano escritor Renato Pacheco, que a mim delegou missão de escolher o que seria publicável. Mais surpreendido fui ficando, cada vez mais, com a originalidade de sua dicção poética. Já os versos de abertura, uma anunciação (“ser sérgio/branco de luz luiz”), exprimiam tratar-se de um lírico singular, em se tratando de um jovem de vinte (20) anos de idade. Nos textos notei uma certa angústia existencial, um incômodo de estar no mundo, mas, nada autocomiserativo; havia até um certo deboche, uma inquietação ante Deus e o mundo. Assim, tanto senti desconforto quanto experimentei muito embaraço no descartar poemas: pareciam ter uma inequívoca unidade. Também Sergio não facilitou a minha tarefa (“Ou tudo ou nada”, com voz suave, mas firme, sentenciou). Unhas bem compridas, cabelos longos e loiros, vestido com uma espécie de bata branca, lembrava um anjo de igreja. E, irreverentes, às ocultas, como era de praxe, pusemos-lhe logo um cognome, um alcunha: O Vampiro. Sim, um doce vampiro. Triste o seu sorriso.

Embora sua aparente simplicidade, avaliei-o pessoa bem complexa. E muito valorosa.  Em palestras que eu ou ele fizesse, eu sempre me referia a isso, e ele confessava muito se jubilar dessa minha louvável memória.

Publicado, pois, na íntegra, o seu livro Um estilo de ser assim, tampouco, inaugurou-se a coleção Alternativa, também encerrada com esse.

Eu então aprovado em concurso público, indo atuar em Dores do Rio Preto, ES, em ofício estatal, assumiu ele o meu lugar nessa mesma FCAA. Nessa entidade pôde ele presenciar maior parte editorial da coleção “Letras Capixabas”, inclusive, aí, o seu próprio livro Pus (1987) e o meu No escuro, armados (também em 1987), ambos saídos em convênio com a Editora Ânima, do Rio de Janeiro.

Foi Sérgio Blank um estilo de ser assim tampouco? Não.

Era ele, embora sua aparente simplicidade (repito) uma pessoa bem complexa. E muito valorosa. Quando em caminhada pela movimentadíssima Avenida Expedito Garcia, eu e filho (Vitório) e mãe (Andréia) desse, costumávamos parar em frente ao seu habitual ponto (o Bar e Lanchonete Castello) para com ele trocarmos afáveis palavras. Sempre ríamos. Desse seu observatório público-secreto parecia ele sorver da vida pulsante em sua mui querida Big Field, o coração comercial de Cariacica, ES. “Um Príncipe em seu castelo”, eu quase sempre o anunciava aos meus. Agora, em passando por ali, ainda lhe vimos o espectro. “Pai, vamos ver seu amigo?”, Vitório pergunta. Caminhamos. Grande campo é o mundo. Big field. Big Field. Blank. Sérgio Blank.

Assim a vida é: fadada a um desfecho. Qual um livro: após narrativas, um ponto final.

E Sérgio Luiz Blank era mais livro do que humano. Um livro enigmático. Agora mais fechado, indecifrado permanecerá.

(in: Facebook, 28-agosto-2020)

Marcos Tavares é escritor e poeta, atual ocupante da cadeira 15 de Academia Espírito-santense de Letras.

Torta Capixaba III

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