Aproveito o sugestivo nome do projeto, para escrever sobre a minha relação com a torta capixaba! Eis aqui meu relato...
Eu aprendi a fazer a torta capixaba com minha mãe que, quando jovem, aprendeu com Senhor José, um vizinho que era pescador e morava no Aribiri, bairro do município de Vila Velha, no Espírito Santo. Como todos os capixabas sabem a torta é uma tradição na Semana Santa, e costuma ser degustada nas quintas e nas sextas-feiras. Como não se come carne nesses dias, por respeito ao flagelo e morte de Jesus Cristo, criaram um prato típico com mariscos e o famoso bacalhau, além de vários ingredientes, de cuja mágica química surgiu a famosa e deliciosa torta capixaba. Os católicos devotos se mantêm fiéis ao simbolismo e fazem um jejum de aves e carnes, as quais substituem, nesses dias, tanto pela moqueca quanto pela torta, dois pratos típicos e festivos da gastronomia capixaba.
Nesses feriados da Semana Santa, a família costuma reunir-se em nossa fazenda no município de Alfredo Chaves, próxima aos arredores da fronteira com Marechal Floriano, acontecimento que se repete há mais de trinta anos. Além do prazer do encontro em família, a bela natureza do lugar e seu ótimo clima, ainda temos o privilégio de saborear a torta feita sempre por muitas mãos. Na época dos meus pais vivos, era uma harmonia contagiante, momentos vividos com muito humor e bem-estar. Tudo era festa! A vida passa veloz, e as gerações de hoje não se prendem às tradições; por essa razão nós, os mais velhos, não podemos nos esquecer de registrar os costumes populares de nossa terra.
Eu cheguei na França, no dia 17 de janeiro deste ano, com passagem de retorno ao Brasil, marcada dia 5 de abril, exatamente dias antes do início da Semana Santa. Planejava passar esse período em Vitória, e a tradição de reunir a família na fazenda, como de costume. Eu sempre puxo o cordão da turma, arregimentando mais de quarenta dentre familiares que se confraternizam em torno do encontro. Quinze dias antes da partida, num piscar de olhos, fui surpreendida em meu e-mail com a notícia - sem maiores explicações de que os voos da Air France haviam sido cancelados. Porém, à noite do mesmo dia, às 20 horas, em todas as televisões da França, num pronunciamento pelo presidente Macron, era anunciado o confinamento devido à pandemia - o Covid 19, que chegara a galope na França e já se espalhava por toda a Europa. Era o começo de uma “guerra”! Eu não vou abordar sobre o assunto, pois milhares já registraram, e prefiro não comentar. A Air France, dias depois, deu-me a chance de partir num voo de urgência, mas como aguardava a minha carta de permanência no país, e eu somente poderia retirá-la no órgão específico; tive a necessidade de rester, ou seja, ficar! Ao tomar consciência de que não poderia mesmo partir para o Brasil, senti um enorme aperto, mas enfrentei o período do confinamento com equilíbrio e com muitas atividades.
Decidida a não deixar passar em brancas nuvens a sexta feira da Semana Santa sem a torta, resolvi convidar amigos para se reunirem conosco no nosso apartamento em Saint Cloud, uma vila próxima aos arredores de Paris.
As possibilidades de se comprar em grandes supermercados eram proibitivas para nós, naquele momento, pois a ordem era não se distanciar a mais de dez quilômetros do local de residência. Havia no condomínio rondas de policiais com vigilância permanente, e a multa de 135 Euros pra quem saísse sem o papel de autorização, local definido aonde ir, e o uso de máscara que já se fazia obrigatório. Estava mesmo decretada a guerra! Nós fomos obrigados a utilizar o socorro de pequenas mercearias, à côté (ao lado), como faziam os franceses no passado. Atualmente em Paris, as mercearias têm como proprietários os árabes, e pode-se encontrar de tudo, mas sem a qualidade dos grandes e poderosos super-marchés (supermercados). Numa dessas mercearias, conseguimos comprar o coeur de palmier - (palmito), e o morue - (bacalhau). Eram os principais ingredientes necessários para a torta. Para adquirir os mariscos, fomos ao “Picard”, um localde congelados, o maior quebra-galho dos franceses, tudo a tempo e à hora para facilitar o dia a dia da francesada. Compramos alguns frutos do mar, mesmo congelados, o moule (sururu), o crabe (caranguejo) e o crevette (camarão); ainda havia outros mexilhões como o conquilles Saint-Jacques, que é muito apreciado aqui, mas tive dúvidas, e não quis misturar no meio dos outros, sem conhecer. Quase parodiando o nosso Casimiro de Abreu - Ai, que saudade de minha Vitória querida! - não achei nem com vela acesa, em nenhuma poissonnerie (peixaria) de Paris, o nosso siri desfiado, é claro que não seria jamais igual ao das mulheres da Ilha das Caieiras, pensei em algo similar, porém não encontrei e fui improvisando... Não tinha o palmito tirado da mata para as tortas anuais, somente o enlatado e o único ingrediente importado encontrado como o que temos foi o bacalhau. Mas arregacei as mangas e com o que tinha pra elaborar a torta e não fazer vergonha ante os convidados, fui à luta. Eu sempre administrei o fazer da torta, mas aqui sem nenhuma ajudante, botei a mão nos mariscos e comecei a limpar um por um, que nem “folle” et “c’est parti”!, expressão muito usada pelos franceses para iniciar uma jornada. Quatro horas depois de todos os mariscos limpos, tomates cortados sem cascas, em pequenos pedaços, alhos e cebolas triturados separadamente, coentros bem picadinhos, bacalhau dessalgado e desfiado, palmito socado e espremido em toalhas de prato; comecei a artimanha da bendita entre todas - a nossa torta capixaba! Um detalhe, eu tinha aqui o colorau e isso, além da corzinha, sabia que mudaria o paladar. Eu registro aqui, o passo a passo de minha façanha e Cacau Monjardim que me perdoe, pois ele, como criador do dito popular “moqueca só capixaba, o resto é peixada”, fala também com orgulho que a torta dele é “única”. Pois eu desafio o meu amigo confrade aos detalhes da minha...
Panelas no fogo, e colher de pau no toque de decolagem… Coloco o azeite com uma colher média de colorau e uma porção de alho para dourar; aos poucos, vou inserindo a cebola, o tomate e o coentro para formar a poupa da base da moqueca. O segredo do sabor está no fazer cada moqueca de cada marisco separadamente! Assim dizia minha saudosa mãe, e tinha razão. A vida inventa umas armadilhas que acabam nos tornando invencíveis! O avanço do tempo me deixava cada vez mais ágil, e ao desenrolar, com todas as moquecas prontas, fiz a junção do palmito e do bacalhau com todos os frutos do mar e assim, sem ter sequer provado, avancei nos finalmentes; mas solicitei o meu companheiro, apenas para provar por mim, que chegara minutos antes de tudo finalizado. Ele soltou um grande suspiro e disse: - Está muito bom, em português, e eu acreditei. Assim sendo, coloquei toda a massa num pirex, bati os ovos em neve misturando em seguida as gemas e cobri tudo, acrescentando as cebolas em rodelas e as azeitonas pretas e “bref” ao forno!
Em geral, as tortas capixabas são enfeitadas com azeitonas verdes, mas, para dar um ar de europeu, ousei diferentemente e, “voilà”, a minha torta capixabesa pronta.
A torta foi saboreada por nós, e pelos convidados brasileiros que moram atualmente em Paris. Aproveitamos o bom momento pra jogar conversa fora e matar um pouquinho a saudade da nossa terra querida. Contamos casos, desperdiçamos tempo, prometemos sonhos: de nos revermos na próxima Semana Santa… no Brasil!
Maria das Graças Silva Neves é musicista, escritora e poeta, com vários trabalhos publicados. Ocupa a cadeira 23 da Academia Espírito-santense de Letras.