O visível e seu invisível

Neida Lúcia Moraes

Trás-os-Montes - Portugal

Foi passeando pelos campos, num fim de semana prolongado, o nevoeiro matinal se levantando de manso que, de repente, reparei na casa de granito escondida entre os plátanos, bem típica das aldeias de Trás-os-Montes. E lá estava ela, uma senhora vestida de preto, os cabelos brancos aparecendo através do lenço, os olhos muitos claros, cor de mel. Apanhava favas, com as quais ia enchendo um grande cesto.

- Bom dia - disse-lhe.

E ela respondeu bom-dia e perguntou se eu gostava de favas. À minha resposta afirmativa, foi explicando que as preparava com chouriço e muitas ervas, ficavam saborosas, na Espanha não as preparavam tão bem. Pelo desenrolar da conversa percebi que me tomava por espanhola, expliquei: - Sou brasileira , ela não pareceu se importar ou não entendeu muito bem.

Ajudei-a na colheita, ao final ofereceu-me chá com uma broa especial, recém-saída do forno de pedra. E a manteiga era feita por ela, o queijo de ovelhas uma especiaria, receita da avó.

Conversamos sobre as plantações, as hortaliças verdes brilhando ao sol, agora que o nevoeiro se dissipava. Colocou mais lenha no fogo, atiçou a brasa e me contou que fora a mais bela jovem (ela disse rapariga) do seu tempo - e eu imediatamente acreditei.

Tinha as mãos grossas e deformadas, carregara à cabeça montões de lenha e potes de água. Ela dissera albufeiras de água, com aquele sotaque especial da região.

Criava ovelhas, porcos e coelhos, muitas vezes agasalhava-os em sua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los e a neve cobria os caminhos.

Contou-me histórias de aparições quando voltei lá no outro dia, convidada para o almoço de favas. Movimentava-se rapidamente lavando as alfaces e as cerejas recém-colhidas, havia também coelho estrujido na sertà (refogado na frigideira). E o vinho saboroso, chamado vinho dos mortos, porque depois de engarrafado era enterrado por dois ou três anos.

Cinco vezes engravidara, cinco vezes dera à luz.

Não sabia nada de ecologia, mas amava as árvores, as flores, os bichos, cuidando de tudo com especial desvelo.

Não entendia de política, nem de economia, nem de literatura, filosofia ou religião. Num vocabulário elementar, contava casos acontecidos ao seu redor. Nunca se distanciara a mais de légua e meia. As palavras "guerra fria", "inflação", "corrupção" não lhe significavam nada.           

Transportava consigo um pequeno casulo de interesses. Sensível às chuvas que alagavam o solo, ou à falta delas, que prejudicava as colheitas. Tinha grandes ódios pelos que lhe roubavam os coelhos, mas imensas dedicações a vizinhos fraternos.

Levou-me a ver os ninhos das cegonhas, sabia que haveria filhotes para breve.

À despedida, apertei sua mão calosa e áspera, pensando nas trezentas ou quatrocentas palavras (se tantas!) do seu vocabulário. Um quintal que se percorria em menos de cinco minutos, uma casa de pedras e chão de barro.

Ela fora bela e ainda conservava traços dessa beleza. Os olhos vivos, inteligentes. Por que foi, então, que lhe roubaram o mundo? Disto sei eu e poderia explicar-lhe com o meu vasto vocabulário. Para quê? De que adiantaria? Já não vale a pena.

Imagino-a na soleira da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para um céu de que de nada sabe, restrita ao seu pedaço de mundo de onde nunca saiu: - 0 mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer - disse comovida.

Sigo pelo atalho mais próximo, levo cerejas, queijos e legumes para meus amigos anfitriões. Mas mal percorro um quilômetro, deparo-me com o oleiro na sua tarefa habitual.

- Boa tarde - digo-lhe - ou deveria dizer boa noite, já passam das nove, embora este sol - tão luminoso!

- É o verão - responde e me fita com aquela mesma expressão serena e fatigada, o boné escondendo os cabelos brancos.

- Gostas dos meus potes? São feitos para a pesca do polvo, achas bem?

Neida Lúcia Moraes, historiadora e escritora, com diversos livros publicados e traduzidos. Ocupa a cadeira 19 da Academia Espírito-santense de Letras.

Torta Capixaba III

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