A passageira do silêncio e outros escritos

Oscar Gama Filho

A passageira do silêncio

Maldito havia eu, cavalheiro, “as mulheres primeiro”, e ela, empurrando-me, entrou no título antes que eu pudesse fazer qualquer coisa. Seu nome: prima donna, personagem principal. Ou “ela”, um sinônimo oculto no meu bolso. Ei-la:

Angulosa e sustenida, parecia, à primeira vista, um domingo morto. Atentando-se bem, entretanto, percebia-se a sua semelhança com uma estação do ano. Aquela em que caem as frutas. O mesmo rosto ressequido de tanto sumo que por ali correu. E na secura é que o sumo se fazia presente, tamanha era a falta que fazia. O sumo escorria pelo não haver líquido.

O caso é que ninguém sabia de palavra que ela tivesse dito. De tão calada, parecia falar. Era só uma impressão. Muda e muda. Nunca, a calma antes da tempestade. Desde criancinha, assim. Mas não que fosse abobada. Ouvia tudo e entendia-o. Suas mãos não escreviam, mas seus olhos aprenderam a ler fundo.

Rapazinhos da vizinhança todos queriam namorar com ela, meiga e calada. Que boa mulher que não daria?, suspiravam eles, com o seu mistério. Quem cala consente, e ela andou indo com eles. Mas, um dia, parou de ir. Desmentiu o ditado, e ficou o dito pelo não dito.

O tempo passou. A vida é passageira, e ela era na vida. Ela passava com ela, vida em geral e vida vivida, paralelamente às badaladas dos relógios e junto com o ruído. Sustenida, como já disse.

É na hora depois que entra o homem. Ei-lo:

Ele, um escritor. Romântico, levava um “com” debaixo do braço, procurando uma que o amasse. Com o seu “com”, entrou na palavra “entra”, do parágrafo acima, e, enfim, a “encontra”, parada na rua. “Iniciar-se-ia uma doação amatória perfeita?”, escreveu ele. O pouco que sabia dela já lhe permitiria criar muitos livros. Era dono de muitas palavras, reinando no reino delas.

O caso é que ele se sentia só. Usava as palavras, e tanto, para escrever, que foi ficando sem nem um pouco delas para gastar em conversas, para pronunciar. Desde o início dos tempos, essa era a vingança das palavras contra os seus donos. Não conseguia se exprimir pelo cotidiano e pelo corriqueiro. Quando abria a boca, não se aguardasse uma frase, mas sim uma sinfonia, um poema épico. Um simples informe, a um velho amigo, era fornecido sob a forma de romance. Foi ficando claustral no contato com seres humanos, e cada vez mais calado, pois ninguém que o suportasse.

O encontro dele e dela foi à beira da Rua do Perfeito. Os dois se ajustavam como o osso à sua carne. Ele identificou, no silêncio dela, o seu silêncio. Ela, ninguém sabe o que pensou, porque o pensamento dela não passava pela palavra.

Com o tempo, ele foi se sentindo à vontade. Falava mais e mais. Ocupava, com suas palavras, os silêncios que a mulher deixava vagos. Já não era como antes, mas ele julgava que “a forma do amor havia mudado, porém o conteúdo permanecia”. Ela, muito calada, mais do que o normal (se isso fosse possível). Ele tinha de saber o porquê. Ensinou-a a usar os silêncios como perguntas e tentou aprender a usar o silêncio como resposta. Empenhava-se em criar uma linguagem do silêncio. Elaborava códigos que, pacientemente, explicava, por silêncios, a ela.

Um dia, chegou o final do conto.

Chegou em casa. O silêncio lhe dizia que ela havia ido embora. Finalmente, eles se compreenderam. Naquela semana, os dois haviam se banhado em silêncio. A perfeição estava próxima. É lógico que ele sabia do risco. Ele sabia o que tinha acontecido: senhora de si, ela aprendera a usar o silêncio como meio de comunicação e de transporte. Há muito ele suspeitava: os silêncios dela estavam lhe dizendo tudo. Ele tinha certeza: usando o silêncio como meio de transporte, ela se afastara dele. Onde seu corpo, não sabia. Se estaria morta? Nada. Ela fugira para o domínio do silêncio, da pausa e do oco. Ele, sem vê-la, estava condenado a supor percebê-la em cada oco, em cada pausa, em cada silêncio e em cada ausência com que se deparasse.

 

Vou-me embora pra Casa dos Ninhos

Vou-me embora pra casa da Senhora dos Ninhos,
Nela renasço em ovo do que estou sozinho.

Mas nunca estou. A Senhora tem um coração numeroso.
No seu ninho, sozinho, cabem tanto, tudo, nós e todos.

E como há espaço metafísico, nele fico,
Nele me espraio, porque lá não há espaço findo

na memória do ar infinito.
Nele todos vivem em solitude

em seu coração imemorial.
Nele, estou além do bem e do mal.

Nele, sou irmão de todos
em seu sopro acolhedor, vital e sonoro.

Rememoro a felicidade e renasço dela de mim mesmo,
E, quando menos espero, respiro a conversa a esmo.

Das palavras renascem as pedras que colhe do chão,
E do seu amor florescem petrificadas no seu coração.

 

Alma-irmã
de Oscar e Nena

(celebrando uma linda amizade!)

É tão bom,
quando a gente encontra um amigo
é tão bom ! …

Um amigo com quem a gente possa calar
um amigo com quem a gente possa falar
… contemplar!

Que a vida é sumo de videira,
bagaço de amor é bagaceira,
é um jeito de a gente se gostar,
sei lá …

É tão bom …
quando a gente encontra uma amiga
uma alma-irmã -

Alguém em quem se possa habitar
Pedaço da gente sem o ser
ser seu corpo sem nele estar
sei lá…

Que a alma foi feita pra ser
e nunca se pode esquecer
aquilo que mora em você,

Estar num paraíso corporal,
querer estar junto, é natural
é ficar feliz só de sentir assim ...

É tão bom ... querer bem …

(um pouco de mim está em você
um pouco de você está em mim...) bis bis bis

Oscar Gama Filho nasceu em Alegre, ES, em 31 de março de 1958. É autor de vários livros, entre os quais O ovo alquímico (coautoria com o filho Alexandre Herkenhoff Gama), História do teatro capixaba e Razão do Brasil. Ocupa a cadeira 21 da Academia Espírito-santense de Letras.

Torta Capixaba III

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