Meu encontro com Geir Campos

Pedro J. Nunes

Não posso dizer com todas as letras que Geir Campos tenha sido uma influência decisiva para que eu me tornasse escritor. Mais prático acreditar que eu fosse afetado pelos meridianos traçados sobre minha eternamente mítica São José do Calçado, uma cidade com vocação literária endêmica, e pelo efeito dos brotos literários que a leitura, essa, sim, minha primordial e verdadeira vocação, fizesse surgir no caule áspero e bruto de minha inconsciência. O mais daquilo que compõe um escritor nem ele nem a eternidade podem dar conta de desvendar.

Houve um tempo, já agora quase distante, em que eu, menino, desci com minha mãe numa fria noite de maio até parte de baixo da Praça Pedro Vieira, em São José do Calçado. Era noite de chocolate quente, essa tépida e mais que cara lembrança daqueles dias felizes. O chocolate quente em benefício da igreja atraía várias famílias nas noites frias de maio, e todos se aglomeravam em volta da barraca de madeira. Até hoje Dona Anna, minha mãe, se lembra de que não havia chocolate como aquele. O líquido grosso e forte que ela tanto apreciava vinha servido numa xícara de porcelana branca, bebíamos ruidosamente, como se assoprássemos para dentro aquela deliciosa mistura fumegante. Depois, havia ali um congraçamento social, os grupos de pessoas iam se formando e a conversa tomava conta da noite gelada. O chocolate de maio era uma instituição, uma das mais poderosas de nossa cidade.

Foi numa noite dessas que eu, menino de uma curiosidade extrema, observei que havia, já algum tempo, um senhor muito distinto caminhando lentamente pelo paralelepípedo em frente ao coreto. Não tinha jeito das pessoas que eu conhecia. Não sei se a pele muito branca, o corte de cabelo incomum, o paletó cheio de dignidade ou o modo de andar, como se chutasse pedrinhas imaginárias, as mãos entrelaçadas nas costas. De vez em quando ele olhava para um ponto que bem parecia ser a casa de seu Héber e dona Arlete. Não pude me conter: “Mãe, que homem é aquele?” Pelo modo como minha mãe ficou surpreendida, concluí que tinha razão em achar excepcional a presença daquele homem tão distinto. Pretextando alguma coisa, minha mãe se afastou e demorou um pouco, devia estar perguntado a alguém de quem se tratava, pois veio com a resposta completa: “É um escritor muito importante, meu filho, que nasceu aqui e está visitando a cidade. Chama-se Geir Campos.” Em toda a minha vida, o que não era grande coisa, pois devia estar aí pelos dez anos, eu, que já havia me afeiçoado aos livros, nunca havia imaginado que um dia pudesse ver um escritor chutando pedrinhas imaginárias numa noite fria de São José do Calçado. Um escritor ali, tão ao alcance dos olhos. Quando ele passou por nós, após finalmente dar o braço a alguém que realmente vinha da casa de seu Héber, para mim passou como um ser mítico e profético, um domador de palavras, um ser inacessível e gigantesco. Até hoje me recordo de vê-lo embarafustar-se com sua companhia pela rua da Biquinha e desaparecer. E essa noite nunca saiu de mim como talvez uma das mais extraordinárias da minha vida.

Anos depois, já residindo em Vitória, revi Geir Campos. Foi precisamente no dia 30 de agosto de 1982, uma segunda-feira. Vinha ele participar de um seminário que ocupou a semana inteira com temas poéticos. Com o propósito de colocar a moderna poesia capixaba em debate, esse pretensioso encontro trazia o título de Seminário de Poesia Capixaba Moderna. Foi no Teatro Carlos Gomes, parece-me que no cair da tarde e entrada da noite. A presença de Geir Campos era bem-vinda, mas nem tanto, a julgar por nota publicada no jornal por um intelectual da terra. Acusavam-no de acidentalmente haver nascido no Espírito Santo, no limite com o Rio de Janeiro, talvez vencendo no limite a lei da gravidade. E diziam que por estas bandas nunca Geir Campos estirou os olhos. Como se lhe bastasse a recriminação de ser um dos maiores poetas da Geração de 45, essa extraordinária geração de poetas brasileiros que, num dos movimentos do Modernismo, propunha a retomada do rigor formal para a poesia. E mais, que tendo obtido êxito editorial, vinha por aqui surrupiar a resma de papel com que se publicasse um ou outro escritor da terra, já que nesse seminário seria lançado – e foi – seu livro Cantar de amigo: ao outro homem da mulher amada, um volume de sonetos pra lá de modernos que narram o triângulo amoroso apaziguado e feliz de dois homens e uma mulher. Faltaram pouco dizer que Geir Campos escorregou para Campos, e depois para Niterói cedendo à mesma lei a que se o opusera e que casualmente o fizera nascer nas terras limites do nosso estado. Ou que era culpado de falta grave por haver construído a reputação de poeta que fez por merecer.

Essa quase noite fria de agosto testemunhou com os ventos que assolavam a Costa Pereira meu segundo encontro com Geir Campos. Vinha ele modestamente falar sobre Introdução à poesia. Se tomou conhecimento do que disseram sobre ele, não deu mostras. No Carlos Gomes, o homem que eu, menino, vira caminhar pelos paralelepípedos de São José do Calçado, via-o, agora adulto, espelhar para nós, sua audiência, a grande e gentil figura. Minha ousadia não passou disso: ouvi-lo. Um ser deslocado do mundo agrário, que rascunhara tão recentemente uns primeiros poemas muito ruins em beira de curral, totalmente autodidata na arte de ler e de escrever, que a custo tentava esculpir sua arte pequena dando murro em ponta de lápis: eu bem conhecia meu lugar quando daquele encontro com o grande artista. Aos vinte anos, o mundo da grande cidade me parecia hostil demais para que eu me revelasse. E a alma do menino de dez anos entrou pela alma do homem feito. E deixei que o poeta se fosse, sem mesmo agradecer-lhe um exemplar do livro que autografava.

Geir Campos tinha grande apreço por São José do Calçado. Mesmo tendo deixado poucos parentes, e distantes, sempre que podia estava na terra natal. Seu porto seguro na cidade era a casa de seu Héber e dona Arlete, uma espécie de embaixada do bom gosto e da cultura na cidade. Geir Campos nunca foi ingrato ao berço. Ele se orgulhava de ser do Espírito Santo, estado onde nasceu “por obra e graça de São José do Calçado”. E reconhecia, no prefácio de Metanáutica, que uma de suas predestinações, a de fazer-se ao mar e a de encher de mar sua poesia, esculpia-se na porta da Matriz de São José: “Na porta da igreja onde fui batizado, vê-se até hoje o baixo-relevo de uma âncora, em ângulo com uma cruz, talvez me predestinando a ser homem do mar.” Ancoradouro de almas, vá saber se de fato essa âncora esculpida na porta da igreja matriz que domina o cenário de uma cidade tão distante do mar não tenha mesmo sido o presságio do destino de um de seus filhos mais ilustres. Seja como for, era em São José do Calçado que Geir Campos deitava sua âncora no Espírito Santo.  

Tanto é que nesse mesmo ano de 1982 eu o vi ainda uma vez mais. Vinha ele autografar em São José do Calçadoum pequeno volume de contos publicado pela Record, Conto & vírgula. Desta feita o menino tímido e agrário entrou na fila e, ao receber seu exemplar autografado, murmurou, estendendo a mão ao poeta:

– Obrigado.

– De nada, espero que você goste – respondeu-me ele, apertando minha mão úmida.

Foram as únicas palavras que troquei com o poeta Geir Campos.

No final da década de 1980 o jornal A Ordem, órgão oficial e noticioso da prefeitura municipal de São José do Calçado, publicou com frequência várias contribuições de Geir Campos, incluindo algumas traduções de poemas, alguns textos de opinião e a famosa série Encontro. Em “Meu (re)encontro do Calçado”, estampado em A Ordem de 25 de setembro de 1988, escrevia ele: “Sempre ouvi dizer que eu havia nascido num domingo de Carnaval. E no ano em que eu ia fazer 45 (quarenta e cinco) anos de idade, o dia do meu aniversário ‘cairia’ num domingo, e de Carnaval; por isso, achei que valia a pena eu ir naquele ano a Calçado, passar lá meu aniversário”. Esta foi apenas uma das várias vezes em que ele retornou ao canto do Espírito Santo que o viu nascer.

Creio que, a esta altura, talvez eu deva me despedir destas lembranças confessando acreditar que a reminiscência mais cara que tenho de Geir Campos é a imagem mítica daquele homem incomum que, numa noite fria de minha infância, chutava pedrinhas imaginárias na Praça Pedro Vieira. Porque foi com esse mesmo olhar que o revi e, se fecho os olhos e forço a memória, essa é a imagem mais nítida que ainda guardo dele.  

Pedro J. Nunes é escritor, nascido no Espírito Santo, autor de Vilarejo e outras histórias, A últimas noite e O tapete de Zezé, entre outros. É o ocupante atual da cadeira 25 da Academia Espírito-santense de Letras.

Torta Capixaba III

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